O engano de Rute

Rute almoçava todos os dias na mesma lanchonete. Almoçava não, comia alguma coisa, almoço mesmo só nos fins de semana, em casa, preparado pela mãe. Lanchava ali porque era perto do trabalho e a comida saia em conta.

Naquele dia, ela notou um homem estranho na mesa da frente. O lugar estava meio vazio, só ela, um freguês bem vestido na mesa do lado e aquele indivíduo usando trapos, com cara de esfomeado. Deve estar pensando em assaltar o lugar, intuiu ela.

Comeu com pressa para sair logo dali. O homem comia de cabeça baixa, sem pressa e sem parecer esfomeado, como pensava Rute. Enquanto isso, ela visualizava coisas em sua mente, via ele se levantar, puxar uma arma e anunciar um assalto. Levar seu celular, seus trocados e mais o que fosse possível. Rute conhecia aquele tipo, vestido daquele jeito, cedo ou tarde, ia aprontar alguma.

Terminou de comer, pediu a conta e saiu, aliviada. O outro freguês, bem vestido, saiu junto com ela; devia ter pensado a mesma coisa.

Rute imaginou então, que aquela era a hora que o sujeito esperava, só ele e a garçonete, o cenário perfeito para um assalto.

O homem que saiu junto com ela se ofereceu para acompanhá-la. Era um homem jovem, vestido elegantemente, bonito... Rute aceitou com um sorriso.

Eles iam a pé pela calçada, conversavam alegremente. Rute falou do homem na lanchonete e em tudo tinha a concordância de seu acompanhante.

A rua estava vazia naquele horário. Havia ali muitos prédios em construção e outros abandonados. Passando por um, que era um misto dos dois, uma construção abandonada, o homem fez uma proposta para Rute. Perguntou se ela não queria dá uma espiada lá dentro com ele. A jovem percebeu a verdadeira intenção dele e disse que não, precisava voltar ao trabalho. Você quer sim e vai, disse ele. Pegou-a pelo braço e a arrastou para dentro do local. Ela quis gritar, mas não deu tempo, pois o homem desferiu um golpe forte em sua cabeça, fazendo-a cair, desacordada.

Quando ela acordou, havia alguém ali. Mas não era o mesmo homem, era o outro, o mal vestido da lanchonete. Ela deu um grito de terror, mas ele disse que estava tudo bem, nada ia lhe acontecer. Ele chegara a tempo de impedir que o homem lhe fizesse um mal maior.

Rute, já mais lúcida e calma, olhou para os lados e viu um lugar meio escuro e quase em ruínas, restos de material de construção jogados por todos os lados, nada que ainda pudesse ser aproveitado. Percebeu também que sua blusa estava rasgada, mas que o homem tinha colocado sua própria camisa para cobri-la. Ela tentou levantar-se, mas ele pediu que ela não o fizesse, tinha batido a cabeça e era melhor esperar a ambulância chegar.

A jovem procurou em si o que havia de errado e, além da blusa rasgada e uma leve dor na cabeça e no rosto, estava tudo mais ou menos em ordem. O homem estava sentado ao seu lado, tranquilo como ela o tinha visto na lanchonete, embora sua visão embaçada naquela hora, impedisse que ela visse a realidade e a fizesse ver apenas algo que ela trazia em si.

Ele tinha uma voz calma e um olhar bondoso; antes ela só tinha visto suas roupas e nada mais. Ela perguntou como ele tinha chegado até ali. Ele disse, enquanto você olhava para mim, com medo ou sei lá o quê, eu vi como ele a olhava, tinha algo de doentio em seu olhar. Como não tinha certeza de nada, resolvi segui-los de longe.

Quando o vi puxá-la para cá, à força, corri. Ao chegar aqui, ele estava sobre você. Eu parti pra cima dele e desferi um chute, ele caiu longe, mas logo se recuperou e veio com fúria pro meu lado, começamos uma luta corpo a corpo... ele se desvencilhou e correu. Não quis deixar você sozinha nesse lugar estranho, por isso não o persegui. Liguei para a emergência e foi tudo.

Rute começou a chorar e ele perguntou se ela sentia dor em algum lugar. No coração, ela disse. Uma dor que remédio algum pode aliviar, completou. Ele sorriu e disse, um dia passa.

Enquanto esperavam, ele contou um pouco de sua vida, que tinha vindo de outro estado e que trabalhava numa construção ali perto. Ela viu que ele ainda era bem jovem e que se estivesse melhor vestido, ainda seria mais bonito do que outro.

Sua consciência estava pesada e tudo o que ela pensava era que precisava mudar seus conceitos. E que devia muito a ele. E que daria um jeito de retribuir o que ele havia feito por ela.

Eles ouviram uma sirene e o homem disse que esperaria lá fora, para indicar o lugar em que ela estava. Sorriu para ela uma última vez e saiu.

Uns minutos depois Rute foi encaminhada numa maca para a ambulância, enquanto era levada olhava em volta à procura do desconhecido, ele não estava mais lá.

Dias depois ela procurou em todas a construções próximas e não teve notícia dele, ninguém conhecia qualquer pessoa com as características descritas por ela. Rute não mais o viu, mas aprendeu a lição que ele lhe dera. Aprendeu pela dor, uma forma difícil, mas bem mais eficaz.

João Barros
Enviado por João Barros em 18/02/2019
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