A história de um adicto
Numa agradável noite de verão, na varanda de uma casa de campo, situada na região de Lagoa Bonita, Mato Grosso do Sul, D. Matilde gostava de ficar a bater uma boa prosa com seus netinhos Pedrinho e Laura. Quase todo feriado de Carnaval era assim, as crianças amavam visitar a casa da vovó no Sertão. À noite, todos iam à grande varanda, adoravam respirar o ar puro e apreciar aquele formidável céu estrelado que parecia só haver naquele lugar. Matilde era uma pessoa culta, viveu por muitos anos no Rio de Janeiro, foi advogada, escreveu artigos importantes na área de Direito, até chegou a lecionar Código Civil e Direito Constitucional em uma conceituada Universidade de Brasília. Teve um casal de filhos, sempre levou uma vida muito agitada, mas após ficar viúva, e se aposentar, optou por passar boa parte do seu tempo em um lugar mais tranquilo, longe da agitação e da violência dos grandes centros urbanos.
Laura, sua neta mais velha, tinha onze anos, Pedrinho, apenas nove. Ambos extremamente curiosos, adoravam conversar com sua avó sobre diversos assuntos. Em uma dessas ocasiões, ainda na varanda, com a noite ameaçando a virar o tempo, Laura perguntou:
— Vovó, hoje eu estava assistindo a uma entrevista na TV, não deu tempo de ver tudo, peguei só o finalzinho, mas eles falavam sobre adictos. Pelo que eu percebi, parece que era sobre pessoas que perdem muita coisa na vida por causa disso...
— Adicto? O que é isso vovó?
Interrompeu Pedrinho com a pergunta.
Surpresa, sorriu a senhora advogada, contendo-se para não constranger as crianças.
— Tudo bem, meus queridos, talvez não seja bem assim... Querem saber o que é um adicto? Vou lhes falar do que se trata... Melhor, vou lhes contar uma curiosidade sobre um autêntico adicto que conheci há alguns anos.
Um certo dia, fiquei sabendo da história de um garoto adicto, na verdade, ele ainda tinha quase a idade de vocês, quando descobriu algo em sua vida que lhe proporcionou muito prazer, quando fez aquilo pela primeira vez, foi uma sensação única, era algo diferente e parecia ser bom. Não era muito comum ao seu redor, mas vez ou outra, ele podia ver algumas pessoas adultas fazendo uso daquelas coisas por perto, ficava curioso, queria fazer também, mas foi só na adolescência que ele teve a grande oportunidade de sentir esse bel-prazer intensamente.
No começo foi um pouco constrangedor, ele queria compartilhar, dividir um pouco daquilo com outras pessoas, mas ainda era só um menino, digamos, um pouco tímido... E além disso, ainda era a época do governo militar, início dos anos 70, chamávamos de “anos de chumbo”, ele era muito jovem, não tinha experiência de vida e vale lembrar que naquele tempo não era como hoje, nem todos os garotos ao seu redor gostavam de assumir essas coisas, pra ser franca, posso dizer a vocês que, até por conta disso, ele perdeu muitos amigos, muita gente afastou-se dele.
Pois bem, meus queridos, o tempo foi passando, ele foi crescendo, descobrindo um mundo totalmente diferente daquele que alguns “garotos normais” viviam, mas aos poucos passou a conviver com outras pessoas e descobrir que elas também gostavam de fazer as mesmas coisas que ele fazia, lá no fundo, começou a perceber que conforme ele entrava naquela vida, mais e mais dependente se tornava e mais difícil ficava de sair.
— Dependente do que, vovó?
Perguntou Laura.
— Calma, apenas ouçam atentamente a cada detalhe da história… No final, tenho certeza de que tudo fará sentido para vocês.
Respondeu a avó.
— Foi no Colegial, para ser mais específica, no que hoje em dia vocês chamam de Ensino Médio, que ele reconheceu a sua total dependência, pois quando terminou o último ano, notou um imenso vazio dentro de si. Por um tempo, passou a lembrar como era bom aquele tempo que ia à escola e por lá fazia aquilo com alguns colegas, que insistiam em levar aquela vida e fazer aquelas coisas em grupo, e olhem que não era só na escola, às vezes, num parque, ou até mesmo na rua. Para eles não havia limites nem lugares, por mais inimaginável que pareça, até mesmo dentro do ônibus! Lembro-me que uma vez ele me disse que até a sua mãe lhe dava conselhos para não andar mais junto a alguns daqueles amigos adictos.
Vejam só, meus caros, a situação ficou ainda pior quando ele entrou na Faculdade, lá foi onde passou a perceber que havia muitos outros iguaizinhos a ele. Não levou muito tempo para notar que, a partir daquele momento, chegara a um ponto em que já não teria mais volta, era o fim, estaria condenado a viver com o peso desses atos e práticas pelo resto de sua vida.
Queridos netos… Olha, foi difícil... Sim, confesso, que foi muito desafiador, mas ele aprendeu a resistir àquele vício e lutou contra si mesmo, pois percebeu que havia vida além daquilo. Poderia mudar o seu mundo e dar uma virada de mesa. Ser uma pessoa normal, ir à praia, a uma festa, a uma reunião de família ou outro evento qualquer, sem a mínima necessidade de ter aquilo por perto. Sim, era possível! Eu mesma fui uma das que lhe dei incansáveis conselhos. Vida normal e independente! Por que não? Foi daquele momento em diante que ele passou a acreditar em suas convicções e fez disso a sua luta, a sua causa e a sua bandeira. Eis a grande lição de vida, meus queridos: Quase tudo é possível quando se tem um foco e uma vontade de lutar por aquilo.
— Como o conheceu, vovó, e qual era o seu vício?
Dessa vez, perguntou Pedrinho.
— Queridos, estou falando de Heitor, um dos meus melhores e mais brilhantes alunos de Direito Constitucional que tive enquanto lecionei na Universidade. Hoje ele é respeitável juiz em uma comarca no Sul de Minas.
E qual era o seu vício? Insistiu Laura.
— Seu vício? (risos) Livros, meus queridos! Apenas livros e nada mais!(continuavam os risos). Um adicto é alguém em extrema dependência de algo, não importa o quê! Trata-se de uma pessoa extremamente viciada, doente, talvez por conta disso, precise de um tratamento específico, definitivamente, Heitor era um verdadeiro adicto por livros.
Ainda em risos, Matilde levanta-se de sua poltrona de varanda, recolhe alguns brinquedos em cima de um sofá de palha, por um momento fica pensativa, fica a lembrar dos tempos de docência na universidade e conclui:
— Ok meus amores, vamos entrar, o tempo realmente está virando, não quero que peguem um resfriado, o hospital pediátrico mais próximo fica a quilômetros de distância daqui.