Os infortúnios do vício

“A verdade do provérbio popular: ‘O hábito não faz o monge’ é sobretudo aplicável à literatura. É extremamente raro encontrar acordo entre o talento e o caráter”.

Balzac

“Onze horas bebendo com ela e nada?”. “Nada, nem uma carícia”, respondeu Jorge com ar sério. “Incompetência sua, rapaz. Fosse eu, partiria pra cima dela. Seria xeque-mate, um nocaute. Duvido que, depois de ter enchido a cara comigo, ela pudesse resistir”.

“É que você não conhece a peça. Parece uma ordinária, mas, de perto, é só bonitinha mesmo”.

Os dois amigos conversavam, à noite, no apartamento de Jorge sobre o encontro que este tivera na noite passada com a Carol. Jorge achava que ela estava louca por ele. Jorge achou errado. Apostou tudo naquela loucura e topou com a sanidade mais límpida, mais translúcida. E, agora, o louco era ele.

“Vadia…”, resmungou. “Queria passar a noite inteira só falando de livros e daquelas filosofias malucas que ela inventa. E eu ali, bebendo cerveja atrás de cerveja, acendendo um cigarro no outro e tendo de fingir um interesse que não tenho por aquele punhado de baboseiras”.

“Você vacilou”, replicou o amigo. “Passa todo o tempo afetando essa pose de intelectual, construindo sua persona como um ‘ser’ etéreo, espiritual, como alguém que só se interessa pelas mais altas atividades do espírito e depois quer que as pessoas adivinhem o devasso que existe sob a máscara? Acho que eu sou um dos poucos que sabe que você não passa de um patife, um pulha!”

Riram juntos. Jorge sabia que o amigo tinha razão. Mas não se conformava. Já havia engambelado várias garotas com aquele seu estratagema. Dando-se um ar de quem olha do alto de uma torre de marfim, ainda que moralmente estivesse afundando num pântano escuro e fétido. Jorge Replicou:

— Talvez você tenha razão, mas a bichinha é difícil mesmo, viu? Uma cretina, isso sim! Perdi um puta tempo. Fomos primeiro a um bar e depois pra casa dela. Ela queria ver um filme. Pensei: ‘agora finalmente me dou bem! Chegamos na casa dela, um filminho, uma cerveja e um final feliz’. Mas que nada, rapaz! Chegamos, ela meteu um filme do Godard pra rolar e começou a falar do quanto aquilo era genial. Confesso que ali eu tive vontade de cortar os pulsos. Pare de rir, porra, não é piada! Foi isso mesmo. Ela me botou pra ver une femme est une femme: aquilo era um porre! Tive vontade de dizer o quanto eu achava gostosa a Anna Karina, mas me segurei e falei só alguma platitude sobre a fotografia do filme. Uma merda! E ficamos naquilo até acabar o filme.

— E depois?

— Depois… nada. Ela colocou para tocar um album do Miles Davis. E eu, àquela altura, depois de tanta cerveja, tantos cigarros e tantas palavras, já estava nauseado. Pedi-lhe licença e fui ao banheiro vomitar.

Jorge acendeu um cigarro enquanto balançava a cabeça, desconsolado. “Fiquei muito mal”, disse enfim. “E ela ali, parada, louca para despejar sobre mim outros títulos, outros filmes, outros poemas de não sei que poeta grego contemporâneo. Agüentei estoicamente, cara! Até o amanhecer”.

“E então?”, perguntou o amigo. “Então ela foi dormir. Não sem antes dizer que fora muito legal aquela noite e que deveríamos repetir, afinal, ela adorava conversar com ‘gente inteligente’. Eu fiquei alguns minutos ainda no seu sofá. E depois vim-me embora, assombrado por minha própria idiotice”.

“Acontece”, disse o amigo. “Pode ser”, replicou Jorge, “mas eu, de hoje em diante, larguei dessa palhaçada de querer bancar o intelectual. Agora só me chamem para sair se houver sexo, drogas e rock & roll. Pro inferno com os intelectuais!”

Luciano Machado Tomaz
Enviado por Luciano Machado Tomaz em 05/02/2019
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