Maria de Zico

Foi ali, na beira da estrada que cresceu Maria, única mulher dos seis filhos de Zico. Em sua infância, nunca fora muito além da serra. O divertimento maior se resumia em ir ao arraial de Santa Rita, com o pai, na garupa do cavalo baio. Zico deu a Maria algum afeto que nunca dera aos dois que vieram antes e nunca dera aos três que vieram depois. Ela lhe lembrava, em semelhança incrível, o rosto de Luzia, esposa que morreu no parto do caçula. Luzia...

Maria cresceu ali, na Baixada do Brejo. De sua casa avistava-se a de Dona Júlia, viúva de Manezito, na encosta do morro. Mais abaixo, o telhado da casinha de João Brás, filho de Dona Júlia, que casou com De Lurdes e ali ficou. À direita, indo para a serra, o pasto e o canavial das terras do finado Juca Pires, pai de Manezito, morto de picada de cobra dois anos depois que o filho tivera o mesmo fim. Não faltou quem dissesse que fora sina, castigo ou algo assim. Coisas escondidas de nós viventes.

Na longa baixada, o brejo e a moita de eucalipto que Zico plantou para servir de para-raio. Um deles foi rachado ao meio em uma tempestade, coisa própria da região, o que fez Maria cultivar o medo de chuva e o silêncio ainda mais profundo que o costumeiro quando fortes trovões chegavam a sacudir as xícaras de esmalte em cima do velho armário. Nessas horas, rezava o terço que sua mãe lhe ensinara ainda muito menininha. Era um conforto, como que um deitar no colo da mãe que tão nova lhe deixou no ofício da cozinha, do tanque e da casa.

Naquela vida previsível, depois de infância curta e estudo pouco, Maria chegou ao tempo de namoro. Zico conservava o desejo de vê-la bem casada, de preferência com Batista de Zé Rosa, rapaz trabalhador e honesto, calado, mas aparentando inteligência, sobretudo no jogo de truco durante as festas de junho.

Fato que, cortando a vida cadenciada da Baixada do Brejo, chegou por essas bandas Dr. Roberto, homem da cidade, com dinheiro e bom de negócio. Gostou das terras de Juca Pires. Coube a Dona Júlia chamar os cunhados para apreciar a proposta, já que, como viúva do filho mais velho do finado, ficara com a responsabilidade de cuidar da fazenda até que se fizesse o inventário.

A coisa andou e se consumou. Logo a região sofreu uma mudança no cotidiano. A plantação de milho para silagem, o caminhão de leite, o barulho da caminhonete de Dr. Roberto subindo e descendo a estrada. Fatos que despertaram em Zico um pressentimento ruim. Deixe estar.

E chegou Jaques, causa da perdição de Maria e de muitos outros fatos, como se verá. Vindo das bandas de Oliveira, assumiu a função de administrador da fazenda de Dr. Roberto. Novo ainda, mas decidido e com destreza, chefiava o retiro. Nos sábados, ia para os bailes, ora em Rio Acima, ora em Santa Rita, outras vezes em São Gonçalo, o que lhe possibilitou conhecer toda a região.

Foi no vinte e dois de maio, na missa de Santa Rita, que Jaques viu Maria. E ela viu Jaques. Coisa que não se pode explicar, deu-se como que um quebrante, uma coisa feita, um feitiço – que Deus nos livre. Zico viu. Os irmãos de Maria também. Batista não estava, mas soube depois. Não foi difícil se perceber a troca de olhares, a quase-hipnose. Começou então a segunda dor de Zico – ele que achava que depois da morte de Luzia não sofreria mais tanto assim. É que ele se enganara.

Seis meses de total fechamento de Maria em casa. Zico não deixaria a filha passear para peão estranho e mal encarado lhe procurar. Quando o tal passava na estrada, a cavalo, parava e ficava à espera que Maria saísse à Janela. Coisa que o irmão mais velho um dia descobriu e foi motivo de grande discussão.

Batista se estranhou com Jaques na festa de São João e depois, na de São Pedro. Saíram no tapa, por coisa besta. O motivo real era Maria, prometida a Batista, desejada por Jaques. E assim foram dias e meses.

Na segunda semana de dezembro ela foi buscar açúcar na casa de De Lurdes, sem que o pai ou os irmãos soubessem. Não havia necessidade, mas ela queria que Jaques a visse, sentia que se encontrariam. Pensado e feito. Na volta do brejo, ele, a cavalo, encontrou-se com Maria, aquela moça que há meses o fazia perder sono e juízo.

Maria ofegava. Queria? Desejava. E sabia que ele também. Mas podia? Pecado de certo era. Mas Deus castigaria? Ah! A mente da gente não abre além do que pode. O suor lhe corria na face. Regulava quatro e meia, faltando um pouco.

Maria pôs sentido naquilo? A coisa se mistura à imagem que fazemos dela. O que houve, mesmo? A gente não consegue voltar no tempo. Maria teve seu ser dividido ao meio: parte querendo, parte negando. O pai saberia? Os irmãos... E alguém viu? De Lurdes, com certeza. Mas coisas assim a gente pensa é depois. No sendo, a cabeça fica é no entre o vai e o não vai. O céu devia de estar fervendo em nuvens. Era assim que os nervos de Maria estavam. Os de Jaques no igual.

Passa dia, vai dia. A gente até esquece às vezes. Mas aquela tarde foi definitiva. Maria sabia. Sabia antes mesmo de sair de casa. Jaques ignorava o risco. Paixão é pra gente deixar de enxergar. Naquela curva, o brejo por testemunha – valha-nos Deus! – e o destino traçado. No sempre.

Ele lhe propôs o trágico plano: fugir na noite de vinte e cinco de dezembro. Maria tremeu, quis dizer não, voz não veio. Por que as palavras nos somem nessas horas? Coragem ainda menos. A cabeça confusa, coração acelerado. Tinha que pensar. Era sério demais o que lhe propunha aquele que há meses a fazia sentir coisa estranha.

Um pano vermelho na janela seria um não; um pano branco seria um sim. Combinado para segunda feira seguinte, dia de Natal. A gente adia as coisas e pensa que elas não chegarão. Mas o tempo é senhor de vivos e mortos.

Correu para a casa de De Lurdes que havia os visto. Nada falou, mas pela palidez de Maria soube, no coração, que boa coisa não se avizinhava. E perguntava? Ora. Há coisas que é melhor não preencher com palavra. Deixar no vão do pensamento, lá onde se pode, quando interrogado, dizer sim ou dizer não, no convém que se mostrar.

Na missa Maria não conseguiu se acalmar, agitada que estava. Seu pai percebeu, os irmãos também. Mas perceberam o que? Boca seca, falta de apetite, dor de cabeça. É o que Maria sentiu durante a tarde. Janta simples. Em roça não se faz ceia de natal, essas consumisses de cidade.

À noite sonhou tudo misturado, casamento, castigo do pai, Jaques brigando com os irmãos, sangue, morte. Chegara a manhã. Hora da decisão. Homens na vila no jogo de bola e viola. Casados contra solteiros. Maria na cozinha, o almoço a ser feito, a casa a ser limpa, vida em aberto. A decisão: o branco, o vermelho; o vermelho, o branco...

– x –

No primeiro cantar do galo, Zico acordou esbaforido. A primeira coisa que fez foi procurar por Maria. Sonhara que ela havia morrido dormindo. Mas encontrou apenas a cama arrumada e a penteadeira vazia. Fugira.

Espingarda, facão. Cavalos arreados. Os irmãos se reuniram na porteira, o pai à frente. Três para santa Rita, dois para São Gonçalo, três para Rio Acima.

– x –

Ali, na velha cadeira de balanço, Maria tem os olhos lacrimejantes quando conta sua história para o filho, o primeiro que a vida lhe deu e o último que quis ter. E um nó na garganta quando fala daquelas duas semanas, as mais terríveis, e, ao mesmo tempo, as mais belas que já vivera. Dormindo com Jaques ao relento, fugindo a cavalo, escondendo-se nas matas, amando-se ao luar. Até que, na estrada para Perdões, numa manhã de chuva, perdeu de tiro pelas mãos de Jaques o pai que teve. E pelas mãos dos irmãos o marido que teria.

Aos cinco, que a renegaram para sempre, jamais contou o segredo que o pai, na volta de uma missa de domingo, revelara a ela, ainda menina, com juras de nunca dizê-lo a ninguém. É que Zico amara tanto sua mãe Luzia quando a conheceu, mas tanto, de paixão tão endoidecedora que foi capaz de uma loucura: ele a roubou na madrugada da festa de Santa Rita.

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José Carlos Freire
Enviado por José Carlos Freire em 04/02/2019
Código do texto: T6567164
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