JUDEUZINHO TURISTA NO HOSPITAL

Na sexta-feira, 6 de novembro, mãe contando para o pai sobre a hospitalização

do garoto, entre 9 e 10 anos... Hospital laico, particular, família

associada. ELE escutou atrás da porta: "É... Vai doer? Não podia ser

outro menino?" ANA SARA preparou a mala, evitando que ELE carregasse

lagartixa seca ou algo pior.

Infecção de garganta. Pensou: "Será que vão me cortar *aquilo de novo?"

Levaria às escondidas, na mochilinha com imagem de um Golem, o dreiden (ou

servivon - pião de 4 lados, para tirar a sorte em Hanuká). Na véspera, ao

computador rapidinho, foto dele e palavra "Shalom" (paz); 7 para a garotada

e 5 para médicas e enfermeiras bonitas; imprimiu num papel branco e colou em

quadrados de cartolina azul, cores da 'outra' bandeira nacional. Pijama

azul claro (tem quatro iguais), "cor da sorte e de bons sonhos", diz ELE. No

pescoço, penduraria estrela de David, seis pontas. "Pronto para o front!"

Aprendera em filmes antigos norte-americanos.

Internação sábado logo cedo. Tratamento intensivo, toda hora medicações e

fisioterapia com pernas e pés, praticamente imobilizado... também

nutricionista, assistente social, psicóloga (bem que tentou enlouqucê-la),

recreadora, faxineira (amou a vassoura de pedaços de lã) etc. - enfermaria

infantil, mista, 8 camas... meninos deitados de um lado, meninas de outro,

olhando-se curiosamente... mães acompanhantes em poltronas de armar.

Dispensou a "iídiche mamale", a favor da irmãzinha DÉBORA, em casa com a babá

linda e amorosa (da pequenininha, dele não!!!) - na verdade, finge que a

odeia nesta função - chama para jogar dominó, ELE rouba sempre, ELA propõe

víspora e ganha sempre: ameaça demiti-la por "justa calça" (?), riem juntos

e recomeçam no dia seguinte.

Não quer namorada judia e se apaixonou de cara no hospital por meninas gois

(não judias) - brasileira, japinha, italiana e lituana (esforço geográfico

para localizar o país), sempre mais altas e mais velhas: "Ani Ohevet

Otach", diz ELE que é 'eu-te-amo' em hebraico... Apresentou-se com os

quadradinhos de cartolina: DAVI. Anotou e-mail de todo mundo. Papel do

receituário e caneta, quase não podendo falar.

Só deixaria examinar a garganta se "as fêmeas da saúde" deixassem beijar a

mão. Ah, tem mais, não aceitou enfermeiro masculino, só um, bem jovem,

estagiário, xará dele, que descobriu sambista da Nenê de Vila Matilde.

Pediu sorvetes e sucos especiais - umbu, graviola, cupuaçu, açaí, araçá,

bacuri, laranja de comunidades agrícolas (kibutz ou moshav) de... Israel.

Pois sim! Foi laranja paulista mesmo e suco de caju (detesta - forçado a

tomar dez, suco bem fraquinho) o tempo todo. Meteu a língua nas mini

caixinhas de geleia, ora goiaba ora morango - o lado selvagem do "educado"

(?) DAVI. Como bom judeu, guardou todas as sobras dos companheiros -

torrada, biscoito, pão doce, bolinho seco, geleia, queijo cremoso, iogurte...

- comeu a gelatina antes que derretesse: não precisaria mexer no

cofrinho-leitão.

Sábado, dia de sinagoga, mas por certo rabino severo e resmungão lhe

perdoaria a ausência. Preocupação o tempo todo: começar a estudar desde já

a estudar para o Bar-Mitzvá. Inquieto - desenhos na tevê da enfermaria e

permitida novela das 18 horas, as quatro meninas suspirosas; preocupa-se com

reencarnação, acha que foi rei sempre homenageado, harém com 7 esposas... ou

foi um camelo magro no deserto, engolidor de tâmaras secas?

Começando a melhorar, tentou explicar à garotada sobre comida kasher ou

kosher, alimentação preparada segundo certas leis religiosas, pequeno

auditório desinteressado, sentiu dor, calou-se. Comida comum, ali; para ele,

sopas - ervilha, cebola moída, creme de galinha. Tomou muito leite gelado -

não podia engolir bife (jamais consumir juntos carne e leite) nem ainda bolo

de nozes com mel. Mentiu que só tira 10 em matemática e ciências

(excepcionalmente, um máximo e raro 8): pretende abrir loja de brinquedos.

"Rua 25 de Março... ou no Morumbi?" No Natal, como as pessoas comprar!

Descobriu por acaso filha clandestina de político famoso, pregão televisivo

eterno de "a nobre família acima de tudo", internada na enfermaria. Pai

judeu, conhecia da sinagoga e estudava na mesma escola com o filho 'único'

legítimo, mãe cantora de 'boîte' - não sabe exatamente o que é isto, mas sabe

o que é um homem ter perigosamente duas mulheres no mesmo bairro. O pai da

menina ofereceu espontaneamente um crédito de 300 reais em camisetas e bonés

em loja que possui num shopping. "Segredo secreto secretíssimo!" O que

disse a mãe - super honesta - de DAVIZINHO quando soube a razão de tão

estranho presente?!

Aprontou muitas. Foi pratica e discretamente expulso ao terceiro dia -

ressureto em casa! Alta na tarde de segunda-feira - na despedida, inventou

uma frase de difícil pronúncia, som esquisito, como sendo em hebraico; mão

no coração para as meninas, continência militar para os meninos.

Como prêmio pelo bom comportamento (???) no hospital, passeio com pai / mãe

/ irmã / babá; pediu Paris (antes da bomba!), depois "diminuiu" para Pico

do Jaraguá.

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LEIAM "O centauro no jardim", de MOACYR SCLIAR, 1983 (resenha em meu trabalho

"Coerências" - 'Algumas estórias', ítem 2, tema circuncisão).

NOTAS DO AUTOR:

*BRIT-MILÁ - Tradicional circuncisão no oitavo dia do nascimento.

NENÊ - Fundada em 1949 por seu Nenê que foi presidente da escola de samba

durante 47 anos - pesquise mais, caro leitor.

O pintor LASAR SAGALL nasceu em 1891 na comunidade judaica da cidade de

Vilna, capital da Lituânia. Aos 15 anos foi estudar belas artes em Berlim,

dando início a uma bela carreira. No Brasil, retratou o povo e a terra em

cores tropicais. Características expressionistas e abstracionistas. // VAN

GOGH nasceu em 1853 na Holanda, mas com ascendência lituana. Pós-impressionista.

Telenovela ALÉM DO TEMPO, de ELIZABETH JIHN, tema principal a

espiritualidade, 2015.

F I M

Rubemar Alves
Enviado por Rubemar Alves em 02/02/2019
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