ERRANTES*

Perdi meu filho! Ele estava aqui sentadinho comendo seu lanche e escolhi a área mais isolada da praça de alimentação porque ele não gosta de tumulto e eu também não. Levantei-me por um minuto pra buscar mais ketchup (ele adora), alguém ligou a TV e ele se escondeu. Não sei o que fazer. Errei em trazê-lo para um local publico? Era próxima a hora do almoço e pensei que podíamos comer aqui antes de leva-lo para mais uma sessão terapêutica. Fui negligente? Já nem sei. Passados quase seis anos revejo como é comum esse sentimento em relação a Nick: não saber o que fazer e se estou certo ou não. Sou novo em tudo isso. Não era esse o meu ideal de paternidade. Sou inseguro, errante. Um pai especial.

Quando Nickolas nasceu tive uma epifania. Coloquei-o no colo e percebi que antes dele eu não era nada. Junto a isso veio também a dimensão do que era ser pai. Foi como uma soma de sentimentos reconhecer-me tão pequeno e grandioso ao mesmo tempo. Eu era apenas um homem comum e não esse super herói do qual todos se compadecem hoje em dia. Ainda acho que não tenho nada de especial. Em certos sentidos sou até mais vulnerável, embora nesses anos de descoberta é inegável o quanto meu filho tornou a mim um ser humano melhor.

Como homem comum me refiro a não ter nenhum talento ou habilidade especial.Nada que me destacasse da multidão. Nunca fui um homem especial pra nenhuma mulher, exceto para Tatiana que enxergou em mim uma luz que não vejo; não era o melhor amigo e nem tinha os melhores conselhos pra alguém; não era assertivo, empático, caridoso ou tinha algum hobby ou grande paixão, não era o cara que toca algum instrumento, que conta piadas, que escreve poesias, que pratica esportes, que canta, dança ou cozinha; não me destacava nem na profissão (corretor imobiliário) ou tinha qualquer conhecimento especifico em qualquer área. Agora me cobro a perfeição diante de um filho imperfeito. Sei que não é justo, mas Nick não merece menos do que o meu melhor. Dou a ele algo que só eu posso dar: a minha vida e o amor de pai.

Nickolas teve um desenvolvimento normal até próximo de um ano e meio. A partir disso começou a saga de Tatiana por pediatras “doutor, meu filho chora muito”, “ele é muito molinho”, “ele não responde quando o chamo pelo nome”, “ele ainda não fala - não é o comum uma criança começar a falar nessa idade, doutor?”. Foram meses até vir o diagnóstico e que no momento apesar do peso da sentença era ao menos um norte para pais desesperados por respostas. Meu filho é autista.

Após essa revelação veio a dor do luto. Foi como perder um filho. Esse menino todo errado não era o que planejei. Onde estava o meu filho ideal? Aquele que ia me abraçar, me olhar nos olhos e me chamar de papai? (Nickolas não olha para o rosto de ninguém e não é verbal – não fala, mas emite sons). Cadê o menininho que teria festas num buffet infantil e ia se divertir normalmente como as outras crianças? Cadê o meu companheiro de futebol? O meu garotinho bom estudante, namorador e que um dia ia casar e me dar netos? Porque Deus me julgava capaz de carregar esse fardo? Onde errei? Porque ele? Porque nós? Tenho também medos como todo pai: O que será do nosso futuro? E o de Nickolas?

Agora vivo a aceitação e embora cansado (sim, eu e a mãe dele vivemos um cansaço físico e emocional absurdo, também por estarmos solitários e um tanto invejosos "presos numa ilha num mar de crianças típicas”) estou sempre em busca de descobrir potencialidades de Nick, os tratamentos mais avançados, um novo remédio, uma nova pesquisa, uma nova terapia, uma nova esperança. Tenho necessidade de falar sobre o meu filho e não sobre a condição dele, isso tende a ser muito difícil às vezes, especialmente para pais que não entendem os nossos desafios. Tenho vontade de dizer ao mundo o quanto ele é esperto, o quanto acho engraçado ele se lambuzar com ketchup, o quanto ele gosta de bolinhas de gude, etc. São os detalhes que ninguém me pergunta. Principalmente quero que saibam como é uma benção cada conquista dele (tão pequena e grandiosa ao mesmo tempo). Preciso que saibam o quanto eu era pequeno e hoje sou maior graças a ele. O quanto eu e a mãe dele somos abençoados e o meu desejo de ser visto simplesmente como um pai comum e não o “pai de uma criança especial”.

Meu Deus! Aonde foi parar meu filho? Será que alguém aqui nessa lanchonete pode me ajudar a encontra-lo?

"Quem poderá me ajudar?" também é uma pergunta frequente. Certamente não as pessoas que o veem com preconceito, que julgam que tenho um filho doente. Insisto ele não é doente, pois para uma doença se pressupõe uma possivel cura. Nickolas tem uma condição – algo que faz com que o seu cérebro interprete o mundo de modo único, porém similar a outros como ele.

Saio dessas divagações quando uma moça gentilmente toca o meu ombro e pergunta:

- Você quer saber onde está seu filho? Acho que ele deve estar passando mal. Saiu correndo por ali na direção do banheiro.

Agradeci imensamente a ajuda e em especial por ela entender o meu filho como um menino comum passando mal e não como um menino que corre assustado porque o barulho e o brilho de uma TV podem ser estímulos fortes demais para um cérebro fragilizado.

Fui na direção correta. Encontrei meu filho num reservado e encontrei também a mim. Minha missão. Nesse instante vi minha luz. Ela aparece em momentos raros, improváveis. Dessa vez quando meu filho mesmo assustado olhou em minha direção e sorriu (FIM)

*Errante: 1- característica do que ou de quem erra; 2-que vive a vaguear; 3- que foge do caminho do bom senso; 4-perdidos que caminham sem direção.

P.S: Essa é uma história de ficção. Não é minha intenção como autor de fomentar qualquer preconceito. Sei que o TEA (transtorno de espectro autista) engloba diversos niveis e portanto são impossiveis de se especificar a todos numa obra ficcional. Elenquei aqui caracteristicas e sentimentos gerais, comuns aos pais, conforme observaçoes e pequisas prévias sem contudo abarcar todas as infinitas possibilidades.