Sorteio
Quando ela era criança, não tinha muitas habilidades sociais. Havia o medo de ser rejeitada por ser diferente ou pior, o de ser insultada. A sua deficiência também não ajudava e as vezes nem mesmo a sua família tinha paciência com ela. Mesmo assim, sempre se lembrou de um conselho da sua mãe: caso não saiba o que falar para iniciar uma conversa, pergunte o que a pessoa faria se ganhasse na mega-sena. A lógica era simples, afinal, se todo mundo já sonhou em ficar rico, todo mundo tem uma visão feliz desse sonho e isso geraria uma conversa sem atritos.
Poucas semanas depois, quando o assunto ainda martelava na cabeça da menina como se fosse um segredo imensamente importante, a sua mãe teve a infelicidade de dizer que a maior riqueza que alguém poderia ter era a vida. A garota associou as duas ideias. Assim, se o prêmio da mega-sena era deixar rico e a maior riqueza era a vida, estar vivo é ter ganhado na mega-sena e ela tinha certeza de que estava viva.
Antes que fosse possível desfazer essa confusão de pensamentos que surgiu na cabeça da garotinha, a sua mãe morreu em um acidente de trânsito. Ela foi criada pelo seu pai, mas, devido a excessivas cargas de trabalho, ele era muito ausente. Ela foi criada praticamente pela escola pública após a morte de sua mãe e, com o ensino precário que recebia, nenhuma das suas confusões foram solucionadas. Ela foi deixada sozinha para resolver os seus problemas que não compreendia nem como problemas.
Sempre iniciava uma conversa do modo que a sua mãe lhe ensinou e terminava dizendo que tinha ganho na mega-sena, mas sem explicar o seu sentido disso. Em alguns momentos, se planejava e até decorava os números ganhadores do último sorteio. Normalmente, ela tentava conhecer pessoas em filas, mas, nos momentos em que o tédio era muito forte, conversava em qualquer momento e em qualquer situação.
Quando uma criança faz isso, os adultos acham bonitinho e fofinho. Entretanto, se um adulto fala isso para outro adulto, é considerado louco, sendo motivo para chacota ou medo. Ela não conseguia inspirar medo já que era baixa e magra, então as pessoas tiravam sarro dela. Isso sempre acontecia pelas as suas costas e ela não chegava a perceber ou desconfiar. Sempre quando não estava conversando com alguém, ficava desligada do mundo imaginando universos paralelos e as coisas mais inimagináveis possíveis.
Em um certo dia, ela foi entrevistada por um programa de TV e, como pediram só pra conversar, ela iniciou do jeito que sabia. O sorriso dela iluminava toda a tela com um ar de leveza. A felicidade de aparecer na televisão parecia transbordar dela. Assim que o programa passou e ela se viu pela tela, imaginou que aquilo era como um espelho que estava levando a sua imagem para todos. Começou a rir ao imaginar a imagem de um espelho voando rápido em um tapete mágico, parando na frente das pessoas e mostrando ela.
Ela começou a chorar quando ouviu os comentários do apresentador. Eram simples e toscos, mas o que mais doeu foi “É cada louco que me aparece”. Ela não entendeu o que ela fez de errado e o porquê de ele estar rindo dela, das coisas que ela falava e do jeito que agia. Acreditou que quando lançassem o vídeo no youtube ela ouviria críticas ao apresentador e elogios à ela. Entretanto, as pessoas eram piores do que o apresentador. Todos estavam rindo dela e um chegou a dizer que pessoas assim deveriam ser exterminadas, pois assim seriam um peso a menos na sociedade. Quando acabou de ler isso, desligou a tela do computador e ficou olhando para o nada com lágrimas se segurando para não caírem dos olhos, mas eventualmente caindo.
Ao não entender o porquê dos comentários maldosos e das risadas, ela ficou obcecada nos comentários. Queria entender e achar as respostas nesse mar de palavras concentradas em uma seção de um vídeo viral. As vezes encontrava pessoas a defendendo nos comentários, mas isso só fez com que questionasse o porquê de precisar de defesa por ser quem era.
Com a quantidade de ataques que sofria, parou de sair de casa. Parou de falar. Parou de sorrir. Parou de sentir vontades. Poucos dias depois, ela começou a questionar se valia mesmo a pena ganhar na mega-sena e decidiu renunciar o seu prêmio. Aquela foi a primeira vez em um mês que sentia o vento e o sol na sua pele, mas ao mesmo tempo não sentia mais nada. Ele se jogou na frente de um trem naquele dia. Entretanto, diferente de muitos que foram ridicularizados na internet incessantemente, ela viveu e viverá eternamente nessas linhas.