O VELÓRIO DE IRMÃ MARIA DO CÉU
Numa tarde de sexta-feira na Freguesia de Santo Antônio a comunidade recebera a triste notícia da morte de irmã Maria do Céu. Pessoa bem quista por aquelas bandas sempre estivera pronta a ajudar de quem dela precisara. Mulher que desde a tenra idade sua vertente religiosa o chamara para uma vida monástica de clausura. A princípio seus pais não aceitaram sua opção de vida, pois para eles, a pequena Maria do Céu estava prometida para um futuro matrimônio com o pequeno Miguel, filho dos compadres Manuel e Amália açorianos da Ilha de São Miguel aportados na comunidade após o nascimento deste.
O tempo passara, os pais de Maria obrigaram-se a aceitarem sua decisão, afinal ela não casaria com Miguel, mas seria uma eterna noiva de Jesus Cristo Nosso Senhor, pois assim ensinava a Santa Madre Igreja. O pequeno Miguel também crescera, tornara-se um belo rapagão cortejado por muitas moças e senhorias da região. Trabalhador incansável sempre ajudando nas lides da terra com seu velho pai e outros irmãos. Exímio pé de valsa, nunca tivera dificuldades de encontrar uma parceira para as domingueiras e folguedos na vila. Algumas assanhadas tiveram no cinto de seus pais o verdadeiro corretivo para uma boa filha de família conforme os costumes da época, porém tais atitudes patriarcais nunca impediram de ações furtivas num canavial, bananal ou mesmo nos fundos da casa próximo à um curral, galinheiro etc...
Sua fama espalhara-se por toda a vizinhança chegando a uma outra comunidade onde residiam uma família tradicionalista no uso de bombacha, guaiaca, lenço vermelho no pescoço a sorver um autêntico chimarrão. Apesar das investidas recebidas por parte das mulheres, Miguel nunca se casara, motivo para falatórios nas rodas de amigos e das famílias, é claro. Como pode um rapagão feito ele não se interessar por nenhuma das pretendentes que surgira em seu caminho, comentavam as moças e senhorias. Porém esta preocupação não se limitara à sua vila, também na outra comunidade, pois nela morava Rebeca, linda morena de cabelos longos escuros, corpo esbelto feito Iracema que tivera uma certa intimidade com Miguel numa noite de sexta-feira santa. Nesta noite de lua cheia diante de um intenso frenesi prometera juras de amor eterno, promessa não cumprida que provocara imensa dor num inocente coração apaixonado.
- Tass vendo aquele istepô, ele quase emprenha a coitada da filha do seu Getúlio.
- Ora pois, pois quem é esse tal de Getúlio que não estou a conhecer?
- Tu não sabe rapaze? É o dono das terras do lado de lá. Dizem que o home chegou na casa do istepô riscando o facão no chão fazendo todi mundi correr pros mato.
- Na minha Açores distante, esta atitude é casamento certo. As donzelas não podem servir de chacota para uma família de Deus. Nossa Santa Madre Igreja não permite tal injúria.
- Desculpe entrar no proseio de vocês, mas estão falando daquele gaudério bosta de merda? Ele andou arrastando as asas para minha prima Rebeca uns tempos atrás deixando meu velho tio Getúlio com o diabo no couro.
- Que estás a fazer neste velório? Foste convidado? Estou sem nada a entender.
- Não fui convidado é verdade, mas vim aqui para conhecer de perto este gaudério que trouxe infelicidade ao meu velho tio Getúlio. Quero ter uma prosa com ele pedir explicação acerca de seu sumiço.
- O rapaze como é teu nome mesmo?
- João.
- Mofas com a pomba na balaia, pois o Miguel hoje é formado na poliça da cidade. Ele nunca anda sozinho, sempre tem uns soldado junto dele, inclusive meu filho Bastião. Não intica com ele, tu vai te dar mal. Acho melhor tu colocar o rabinho no meio das pernas e te mandar pro lugar de onde tu veio, o istepô.
- Mas bah, tchê. Capaz, eu não sou de desistir de minha empreitada.
- Ora pois, pois nosso amigo está te dando um conselho e é melhor tu ouvir o que ele está te dizendo. O Miguel é um homem bom, não faz mal a ninguém. Vamos respeitar o velório de Irmã Maria do Céu. Nosso Senhor Jesus Cristo há de te abençoar e te proteger no caminho para tua casa.
- Tá bom, eu sou um homem religioso também. Me diga onde fica a patente pois estou necessitado.
- O istepô, fica ali nos fundos do quintal, tá vendo aquela casinha no meio da bananeira, fica lá. Se precisar, na porta tem pendurado uns sabugos de milho. Quer levar a pomboca pra alumiar o caminho?
- Bem capaz. Mas que barbaridade...
O gaudério após sua repentina visita a patente desaparece tal qual uma alma penada evitando um verdadeiro caos que ameaçava se abater no velório de Irmã Maria do Céu. Enquanto isto a comunidade juntamente com um grupo de carpideiras continua seus lamentos junto ao esquife da “santa” defunta. Seu Manuel e o manezinho fofoqueiro ficam faceiros com o sumiço do estranho visitante juntando-se ao grupo de lamentos a continuar a reza da encomenda da alma.
Na cabeça do Miguel ascende lembranças de um passado distante onde ambos na inocência de crianças com suas peraltices provocavam perturbação aos seus pais e familiares. De um lado sua família fazendo planos para um futuro casório entre ambos, do outro lado a família que prometera a pequena Maria do Céu preocupando-se ser possível manter a promessa viva. No entanto o tempo passara a promessa fora rompida causando grande frustração na família de Miguel.
Miguel acorda de seu devaneio se perguntando: valeu a pena esperar todo este tempo numa possibilidade de ela renegar o hábito e vir correr em meus braços e dizer: Meu amor vim cumprir a promessa? Nunca casei esperando esta possibilidade e hoje vejo na minha frente este corpo inerte. Quantas oportunidades eu neguei? Quantos amores por mim sentiram? E agora, meus sonhos serão enterrados junto à este corpo. Meu coração dilacerado te pede perdão por não te corresponder a altura. Me trocaste por um tal de Jesus, mas quem é este homem com poder tão grande que te enfeitiçou?
Aproximando-se do esquife como último adeus, Miguel percebe em seus olhos gratidão pelo seu amor ao mesmo tempo sente uma brisa passeando no seu corpo acompanhado de um forte abraço e um beijo que ele nunca sentira em toda sua vida. Miguel enternecido beija sua testa despedindo-se de Irmã. Maria do Céu, grande e único amor de sua vida.
Valmir Vilmar de Sousa (Vevê) 21/01/19