Ela andava pela estrada sem sentir nada, como se fosse possível ignorar a miséria e o caos, mas a dor era tão grande que engolia os sentidos. Os olhos secos, a visão turva, tropeçando, caindo, se arranhando, se engasgando na terra amarga. Cansada demais. Muito cansada.
Tempo. A sensação de impotência e culpa sufocavam; lembrou que estavam almoçando, o irmão, a mãe e os amigos rindo e implicando porque ela comia demais. Repetiu duas vezes o doce de abóbora com coco, prometeu comprar um queijinho pro pai. Eles ainda riam quando o mundo desabou à sua volta.
Ela gostava tanto daqueles momento em volta da mesa da cozinha, o alimento era apenas um pretexto. Estar junto, tudo que importava.
Agora não restava nada além dos pensamentos, teimando em reviver os minutos, traçando imagens dos momentos finais, sugerindo talvez a esperança de sobrevivência. Não havia como fugir, ela mesma por muito pouco não foi arrastada, só não foi levada porque foi buscar alguma coisa esquecida. Alguma coisa que não conseguia lembrar, mas que era muito importante. Ela sentia que precisava continuar, continuar até fazer alguma coisa, alguma coisa muito importante.
A estrada agora estava mais cheia, juntavam-se aos poucos os andarilhos trazendo no corpo a marca da lama fétida, alguns apenas se arrastavam e seguiam o fluxo.
E de repente havia uma mão pequena tocando a sua, bem de levinho e então ela se lembrou. Lembrou de Maria, a menina que criava desde que soube que não podia ser mãe, Maria sua filhinha também caminhava ao seu lado. Mariazinha tão pequena, que brincava no terreiro, que não queria entrar para almoçar porque estava encantada com o cachorrinho.
Seu coração encheu-se de amor, segurou bem forte a mão da filha, e então percebeu que já não estavam caminhando na lama, havia uma grama macia sob seus pés e ela entendeu que estavam voltando para casa.
Maria, Mariazinha, Ana e tantas mães, mulheres, meninas, pessoas, vidas. Enluto cada uma dessas vidas, escrevo porque é assim que lido com a dor. Escrevo histórias.
Giselle Sato
Tempo. A sensação de impotência e culpa sufocavam; lembrou que estavam almoçando, o irmão, a mãe e os amigos rindo e implicando porque ela comia demais. Repetiu duas vezes o doce de abóbora com coco, prometeu comprar um queijinho pro pai. Eles ainda riam quando o mundo desabou à sua volta.
Ela gostava tanto daqueles momento em volta da mesa da cozinha, o alimento era apenas um pretexto. Estar junto, tudo que importava.
Agora não restava nada além dos pensamentos, teimando em reviver os minutos, traçando imagens dos momentos finais, sugerindo talvez a esperança de sobrevivência. Não havia como fugir, ela mesma por muito pouco não foi arrastada, só não foi levada porque foi buscar alguma coisa esquecida. Alguma coisa que não conseguia lembrar, mas que era muito importante. Ela sentia que precisava continuar, continuar até fazer alguma coisa, alguma coisa muito importante.
A estrada agora estava mais cheia, juntavam-se aos poucos os andarilhos trazendo no corpo a marca da lama fétida, alguns apenas se arrastavam e seguiam o fluxo.
E de repente havia uma mão pequena tocando a sua, bem de levinho e então ela se lembrou. Lembrou de Maria, a menina que criava desde que soube que não podia ser mãe, Maria sua filhinha também caminhava ao seu lado. Mariazinha tão pequena, que brincava no terreiro, que não queria entrar para almoçar porque estava encantada com o cachorrinho.
Seu coração encheu-se de amor, segurou bem forte a mão da filha, e então percebeu que já não estavam caminhando na lama, havia uma grama macia sob seus pés e ela entendeu que estavam voltando para casa.
Maria, Mariazinha, Ana e tantas mães, mulheres, meninas, pessoas, vidas. Enluto cada uma dessas vidas, escrevo porque é assim que lido com a dor. Escrevo histórias.
Giselle Sato