O silêncio do pó

Seu olho cinzento capturou um único momento da trama, uma ameixa escapando do talher em direção ao chão. Era uma mulher jovem com peças retalhadas pelo rosto avermelhado sem brio, suas rugas mapeavam a covardia de uma vida enquanto suas mãos sem movimento moviam com maestria. Sentada numa cadeira ao lado de suas aranhas favoritas, observava confusa desconhecidos usando máscaras de parentes, aquelas que foram entregues no início do baile. “Não posso me levantar, ele logo vem me buscar” pensou a jovem enrugada enquanto via a deselegância do malaco ao pegar a ameixa no chão e escondê-la no cinzeiro. Achou ser uma atitude de filósofo e pensou em expulsá-lo sem demoras, mas não podia levantar-se por que ele logo a buscaria.

A mulher enrugada não queria o baile, olhava para a rua de onde seus amigos acenavam, mas era apenas uma noite escura e todos estavam em casa. Ela retribuía o aceno convidativo fazendo caretas para seu reflexo na janela. Era uma vidraça já surrada, daquele tipo travestida de honestidade, se caia e debruçava e ninguém notava, assim como o resto da sua casa. Voltou seu olhar para o chamado baile com a destreza de uma mulher maestra, e se perguntando onde estaria a sabatina e os dançarinos pomposos. Mais uma vez rogava silente para que ele a buscasse logo. A casa estava sombria neste dia, a chama das velas mitigavam a beleza esférica de seu castelo, as paredes haviam sido esquecidas há tempos, embriagadas com o mofo e molhadas com cicatrizes do tempo – as rachaduras tímidas eram raízes de árvores do jardim que consumia seu palácio. A mulher sisuda de apenas um olho avisou que o jardim não deveria ter plantações esparsas, “as trepadeiras enganam o dia”, dizia contumaz.

Sentia o cheiro de comida preparada com terra, imprópria para um baile de classe. Corada de vergonha balbuciou coisa qualquer, saindo poeira de sua boca que mal abria há anos, seguido de um vento que se ela estivesse viva, seria confundido com hálito. Tocaram sua mão, mas ela não conseguia enxergar quem. Seria provavelmente alguém com aquela máscara, mas nem ao menos tinha certeza se era uma pessoa de fato – já havia esquecido o sabor de um toque. Confusa, apenas levou sua mão à boca como que por força da natureza, enquanto sentia aquele suposto toque, e foi surpreendida por uma massa adocicada sujando seus lábios finos, que na verdade não estavam mais ali. “Madalena, é você menina?” perguntou para sua própria garganta, enquanto recebia um suave toque na nuca, como um sinal de adeus entre colegas, aquele tipo de movimento de um francisco acariciando um cachorro sarnento ou uma empregada raivosa tirando a poeira do móvel alheio.

A casa já era velha por demais. Dos becos mais distantes já coleavam os ratos preto e branco para comprá-la, mesmo com suas rachaduras e mofo. O evento era uma despedida da casa, a família estava reunida para comemorar algum aniversário e, para tanto, dispuseram de toda arquitetura e uma limpeza ostensiva na casa empoeirada. Os filhos da velha riam-se com taças de vinho, congratulados pela atitude de amor. Realmente organizaram tudo e por isso gracejaram aos anjos a racionalidade de suas decisões. Antes, assustados com o soturno que invadia as

sombras da casa, retiraram as teias de aranha que já desenharam os quadros da casa, a poeira que fazia parte da nova pintura do móvel e o cheiro de carne morta que ainda tenta se manter pulsante, odor característico e repugnante. Sobrou apenas um lugar a limpar, mas não queriam incomodar a velha que já não conseguia se mover e nem entender o que acontecia. Assim a jovem enrugada mantinha-se como um montado de poeira na cadeira, uma sujeira que a condescendência não deixou ser sujeitada. A casa naquela noite eram luzes de vela iluminando corvos de colarinho e um canto histórico – onde jazia uma senhora miúda, cega e atrofiada, sentada num túmulo de madeira sem cor ao lado de um quadro de sua juventude e uma janela para o passado.

Uma ameixa seca foi lançada ao cinzeiro, não por maldade, mas apenas por que era o lugar que a colocaram, fazia sentido seu pertencimento envolto das cinzas de um cigarro, na parte indesejável de um todo viciante. A velha era mais seca que a ameixa, enxergava parcialmente com um olho, atrofiada desde suas pernas aos braços e seus sentidos a enganavam, só escutava timbres que aos poucos iam se escondendo nos mesmos cantos que sua visão já não mais atingia. Ela não existia no presente, era apenas uma lembrança de um outro tempo e apenas vivia fragmentos da sua vida, um caldo de memórias que simulavam sua visão, arfando por um tipo de existência. Enquanto a pequena reunião corria ao som de crianças enamoradas pelos móveis e adultos brincando pela casa, a velha tocava seu piano com maestria de vilã, observando a elite comemorando o novo ano em sua belíssima casa, todos recortando faces ensanguentadas para colar máscaras em seu lugar. Ela escutava berros e o baile parava para olhar uma criança nua que acabava de cair no chão, era uma imagem embaçada deslocada do resto e assim a velha já não encontrava a ameixa no cinzeiro mais. Há anos ninguém fumava na casa.

– Olha como ela está linda! – A pianista escutou uma voz trêmula e chateada, e respondeu que seu vestido era de sua mãe, mas a voz já havia desaparecido e estava abafada em outro canto com a mesma fala em direção a outras sombras.

Fazia muito frio, mas ela não podia se levantar para buscar seu casaco, com medo dele chegar e ela não estar mais no lugar que a deixara. Retinha-se imóvel tentando não incentivar flertes de répteis rastejando pelo piso sedoso. “Se me importunar devo avisar-lhe logo”, “Ora se não”, e logo sua mente a derrapava para uma memória bucólica qualquer: sua fazenda era um recanto de fadas no inverno, apertava sua calça justa e às escondidas de seu pai brincava com um chapéu de homem dando tiros para o alto perseguindo posseiros.

O barulho era agradável ao mesmo passo que a ensurdecia, era uma falta de respeito interromper seu harmônico no piano da casa. Ria-se, com dores no peito. Não lembrava quando começou o baile, apenas que estava em curso, talvez sua vida inteira fora uma projeção daquela festa e talvez a ameixa sempre estivera caindo. Ela só sabia que Madalena deveria limpar o chão e depois deveria adverti-la quanto a deixar que uma visita pegasse uma ameixa daquela forma. “Maldito filosofo, como ousa!” – criticou seu irmão, ou alguém que parecia o filósofo que ele já fora. Só após balbuciar brisas de outubro que percebeu a falta de atenção que recebia, nem Madalena a escutava mais, em verdade era um ultraje a forma que tratavam uma dama de classe. Seu ouvido ardia no interior, mas não entrava em pânico pois eram apenas aranhas disputando sua atenção, mas a cada dia os ovos eclodiam novas

teias, o que para ela dificultava escutar o barulho severo que o motor do carro dele fazia ao estacionar. “Como amava aquele carro”, chorava palavras sem voz.

O baile parecia estar chegando ao fim, ao menos as vozes estavam caminhando para o nada. Fez que sim com sua cabeça e acenou para todos enquanto imóvel em sua cadeira, mas ninguém notou seu espirito acenando. Logo após alguns segundos, silêncio total.

“Onde está meu lenço”, pensava a jovem enrugada tapeando seu vestido de renda bege costurado à mão enquanto sentia um suor escorrendo seu nariz. Ela tinha que se apressar para uma aula que lecionaria em poucos minutos e não poderia chegar sem estar apresentável, mesmo que fosse para poucas mulheres. Já sabia que ele não chegaria antes de sua partida, deveria ir embora sem ele.

Jazia ali uma criança secular, como um acessório para um móvel do século passado. Ao seu redor estavam alguns restantes da grande festa familiar, dançando como marionetes, mas ela já não conseguia escutar suas crianças ou seus discursos tais. Para ela, já não estavam mais ali. A própria já não estava ali. Ela andava para trás na história, habitava uma mansão que já há muito fora consumida e escondia-se no profundo de sua mente, único lugar que as aranhas não adentraram ainda.

Não se sabe quantos minutos ou dias se passaram após aquela noite, muito menos velha sabia a contagem exata. Suas pernas não andavam, suas mãos não tocavam, seus olhos não enxergavam, seu nariz contemplava o esquecimento e seu ouvido já estava coberto com um manto de teias. Enquanto habitava seu profundo inconsciente, o mundo se corroía aos poucos ao seu redor. Nenhum vento entrava mais na casa, ou pelo menos ela não percebia mais o vento, e assim a brisa de outono demasiada querida não existia mais para seu corpo de casca. Sua existência era sugada aos poucos, deixada à deriva no mar do esquecimento e da indiferença. Se ainda respirava ninguém sabia, tinham medo de assoprar um amontoado de cinzas que sentava na madeira insípida. A janela travessa quebrou em novembro e ninguém estava na casa.

Elias Mendes
Enviado por Elias Mendes em 22/01/2019
Código do texto: T6556818
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