O nascimento do medo

Eu guardo um segredo terrível, mas ninguém acredita quando digo, sorriem na minha cara. Coitados, não sabem como posso acabar com cada um deles, com um olhar apenas. Nem mesmo minha mãe sabe que tenho esse poder. Já pensei em contar pra Marcinha, minha amiga da escola, mas acho que ela não compreenderia, pelo menos não ainda. Vou esperar ela estar preparada.

Acho que tenho assistido muito desenho animado e filmes de super-herói, minha imaginação tá me fazendo acreditar em coisas absurdas. A Marcinha gosta de mim, já percebi, mas as vezes ela fica com medo. Não que eu tenha qualquer poder, mas por viver dizendo que tenho.

Todos dizem que a encosta vai desabar e que nossa casa está numa área de risco. O problema é que não tem pra onde a gente ir. Têm noites, quando vou dormir, fico com medo dela desabar enquanto eu estiver dormindo, e eu acordar soterrado. Vou abrir um buraco no barro com meus olhos de fogo, tipo o Ciclope. Sabe, o Ciclope dos X-Men?

A Marcinha mora num lugar seguro, longe da encosta. Eu gosto da Marcinha, ela é doce como bala de coco. Roubei um beijo dela uma vez. Roubei, não; peguei emprestado. Quando ela quiser, eu devolvo (Risos).

O que eu mais gosto no circo é o palhaço. Palhaço mesmo, não uma pessoa vestida de palhaço (Risos novamente). A Marcinha gosta mais dos trapezistas. O circo é uma coisa muito antiga, não era como vemos atualmente, eram apenas manifestações esparsas: na China, pinturas rupestres de antes de Cristo mostram atividades identificadas como sendo circenses; na Grécia, quando os Jogos olímpicos surgiram, muito do que faziam por lá tinha a ver com o que existe nos circos ainda hoje.

O homem da defesa civil já vistoriou nossa casa várias vezes e em todas a condenou. Disse que temos que sair dali, porque não vai demorar a desabar tudo sobre ela. Seremos soterrados se não sairmos o mais breve possível. Ele diz isso, mas não arranja um lugar pra gente ficar. Os abrigos estão todos cheios. Minha mãe reluta em deixar essa casa, ela tem a ilusão de que pode enfrentar qualquer coisa, até mesmo a natureza. Ela também acha que nada vai acontecer com a gente. Todo mundo acha isso, até que aconteça.

A carta que eu mais gosto no baralho é o Ás de Ouros, ou apenas ouro? Não sei, só sei que essa é a carta que mais gosto. O baralho também é uma invenção chinesa, não tão remota quanto o circo, mas as notícias mais antigas sobre jogos de cartas, vem da China, lá pelo século XIII. Essa carta representa poder, dominância, e tudo que se liga a esse fator da vida. Como sei disso? Perguntei na rua pra uma velha que queria jogar cartas pra mim. Eu não tinha dinheiro pra pagar sequer um lanche, mas lembrei que gostava dessa carta, perguntei o significado, ela me olhou como se não entendesse a pergunta, como sustentei o olhar, ela me falou algumas coisas sobre o Ás de ouros, guardei apenas isso. Passei a gostar ainda mais.

O animal que mais gosto é o leão, mas dos mitológicos é o centauro. A Marcinha gosta do tigre, e o mitológico, o Pégaso. Animais domésticos ela prefere o gato, ela não varia muito quando o assunto é animais preferidos. Dos animais domésticos eu não gosto. Gosto de ler. Tenho uns livros velhos que eu achei no lixo. Também frequento bastante a biblioteca da escola. Pego livros emprestados.

Tem chovido muito e cada vez aumenta mais o risco da encosta desabar. Minha mãe tá procurando um lugar pra gente ficar enquanto passa esse período de chuva, mas tá difícil de encontrar. Aqui em casa somos só nós dois. Meu pai morreu há muito tempo, eu ainda não tinha nascido. Na verdade, não faz tanto tempo assim, se não ele não seria meu pai, pois só tenho doze anos. O mês do ano que eu mais gosto é dezembro, e não é por causa do Natal. Gosto sem um motivo certo.

O Cadu, Carlos Eduardo, todos sabem, mas gosto de esclarecer, disse que a Marcinha é a namorada dele. Perguntei pra ela, ela negou, quase chorando. Agora não sei em quem acreditar. Vou destruir o Cadu com meus olhos de Ciclope. O ciclope também é um ser mitológico, um bicho horrendo que só tinha um olho. Esse mito é grego. O meu X-Men preferido é o Ciclope. A Marcinha gosta da Jean. A gente forma um casal nesse aspecto.

Quando eu crescer, vou levar minha mãe pra morar no centro da cidade, longe da encosta. Ela trabalha muito e mesmo assim a gente quase não tem o que comer. Minha mãe disse que gostava mais da década de 90. Perguntei se era porque ela ainda não era mãe, ela chorou dizendo pra eu nunca mais falar uma coisa dessas. Que eu era a única coisa que importava nessa vida para ela. Não queria dizer, mas também chorei, me bateu um arrependimento.

A Cacau não sai do meu pé querendo me beijar. Até quero, mas penso na Marcinha e não sei se vale a pena. A Cacau tem os cabelos pretos, com cachos, e anda sempre arrumada. Ela é uma das três meninas mais bonitas da escola. Mas a Marcinha é a mais bonita de todas. Os cabelos da Marcinha são lisos e pretos.

Meu planeta preferido é Júpiter. A Marcinha prefere Vênus, disse que porque ele brilha à noite. O Cadu gosta de Plutão. Plutão não é planeta, sorri na cara dele. O Cadu ofereceu cinco reais pra Marcinha dá um beijo nele. Ela olhou pra mim e disse não. Ela gosta de mim, aposto que me beijaria de graça. Mas eu tenho vergonha de pedir. Quando a beijei foi de supetão. Ela não esperava, nem eu. Veio uma vontade não sei bem de onde e eu, sem pensar um instante sequer, segurei a cabeça dela e a beijei com força e sem jeito. Ela saiu correndo e passou uns dois dias sem falar comigo. Mas tudo voltou ao normal e nunca mais falamos sobre isso.

Na última chuva a nossa casa tremeu. Minha mãe acordou assustada, e nós saímos correndo, deslizando numa lama que escorria lá de cima. Naquela noite a gente não dormiu, passamos a noite ao relento, sob uma chuva fininha e teimosa. Tentando nos proteger de algum jeito. No outro dia não fui pra escola, senti muita falta da Marcinha. Também fiquei chateado porque era dia de inglês, a melhor aula de todas.

Minha professora de inglês não sabe nada de inglês, mas é uma loirinha muito bonita. O namorado dela tem uma moto de alta cilindrada. Ele vem todos os dias deixar e buscar ela na porta da escola. Se eu namorasse uma mulher dessas eu fazia assim também. O nome dela é Carla, mas ela me disse que eu podia chamar ela de Carlinha, menos na sala de aula. Algumas vezes antes de sair, ela me dá um beijo na bochecha e diz tchau bonitinho. O namorado dela fica olhando e sorrindo, ele sabe que não represento qualquer perigo pra ele, ainda.

A Marcinha não gosta da professora de inglês, tem ciúmes. Também não gosta da professora de geografia. A professora preferida dela é a de Português, Fátima. Fátima é uma cidade de Portugal, onde apareceu uma santa, faz tempo. Coincidência, a professora de Português tem o mesmo nome de uma cidade de Portugal. Eu gosto mesmo da de inglês, não sabe de nada mas é linda, compensa.

O dia da semana que eu mais gosto é sexta-feira, não sei se por causa da Paixão de Cristo ou por causa do filme Sexta-feira Treze, um motivo santo e o outro sacrílego (Risos outra vez). E também por que o dia seguinte é sábado, posso sair, jogar bola, passear com a Marcinha e, às vezes, o Cadu. Chato o Cadu, vive no meu pé também, nunca me deixa ficar sozinho com a Marcinha, fica puxando o meu tapete.

O meu ciclo de amigos consiste nessas quatro pessoas, eu, a Marcinha, o Cadu e a Cacau. Estamos quase sempre juntos, na escola, naturalmente. A Marcinha e eu somos os inteligentes. A Cacau e o Cadu são os divertidos. A gente combina bem. Somos amigos desde os primeiros dias de aula dos primeiros anos de estudo quando ainda nem sabíamos falar direito. Eu sou o único que moro numa área de risco, os outros moram distante daqui. A Cacau é quase rica, o pai dela tem um comércio, tem até carro, não é de luxo, mas é um carro mesmo assim. Ela tem doze anos completos. O Cadu também. Só a Marcinha que ainda vai completar, tá pertinho, faltam apenas dois meses.

Tanta conversa atoa que até esqueci que sou o Ciclope, tenho poderes. Tá bom! vou parar com isso, não sou mais menino pra tá com esse tipo de bobagens. Tenho que cuidar da minha mãe e da casa, antes que tudo desabe sobre nós. E não vai ser com superpoderes que farei isso. Também tenho que pedir a Marcinha em namoro, antes que o Cadu consiga conquistá-la. Ele não desiste e mais cedo ou mais tarde ela pode se cansar de esperar que eu tome uma atitude.

A cor que eu mais gosto é a branca, Paz. Gosto de vestir roupas pretas, um contraste, portanto. Não tenho nenhuma, mas quando eu puder, vou usar quase sempre preto. Acho que me deixará mais bonito. A Cacau gosta de rosa, quase sempre se veste com essa cor, fica patricinha, bem. A Cacau disse que gosta de mim, não apenas como amigo. Ela não tem idade pra saber dessas coisas. Eu já tenho certa experiência, depois que beijei a Marcinha.

Antes de dormir minha mãe veio falar comigo, disse que me ama e me deu um beijo na testa. Muito estranha essa atitude dela. Fiquei com medo, sei lá. Será que é hoje que a encosta desaba? Deveria ter dito pra ela que também a amo. Muito mais do que sou capaz de confessar. Minha mãe é uma mulher muito bonita, e não é porque é minha mãe não. Ela é mesmo uma mulher linda. Mais do que a Carlinha. Muito mais. Pena que tenha que se sacrificar tanto para sustentar nós dois. Vou tirar ela daqui, um dia. Vou, tenho certeza.

Meu Apóstolo preferido é João. Gosto mais do Seiya, entre todos os Cavaleiros do Zodíaco. O livro que mais gostei foi Dom Quixote. A mulher mais bonita que já vi foi Helena, não a de Tróia, a do Zorro. O melhor dia da minha vida foi quando dei o beijo na Marcinha. A melhor pessoa que já conheci foi minha mãe. O que mais gosto de fazer é jogar bola e conversar por horas com a Marcinha. Meu maior sonho é ir embora, levando as duas comigo.

*****

Acordo meio zonzo com o barulho da televisão. Aqui não é minha casa. Esse cheiro é nauseante. Uma voz que parece vim de muito longe, fala sobre um deslizamento de terra no Morro X. Encontraram o corpo de uma mulher, e um menino de mais ou menos doze anos, por um milagre, ainda vivo. O menino foi levado para o hospital. A mulher, segundo os vizinhos, era a mãe dele. Só os dois moravam na casa. A voz vai se distanciando cada vez mais até eu não conseguir mais ouvir. A escuridão vem chegando devagar, no escuro total ouço a voz da minha mãe. A princípio, não sei o que ela diz, mas a palavra vai se materializando e enfim eu escuto nitidamente, Adeus...

Tento abrir os olhos e espantar o medo com o fogo que eles irradiam, mas não consigo... o medo nasce de um sonho ruim e cresce cada vez mais, quando a gente descobre que não era um sonho.

Uma lembrança me vem calmamente, como uma brisa no fim da tarde, Marcinha e seu hálito fresco... O negro dos seus olhos, o negro dos seus cabelos, a luz da sua alma, todo o meu mundo num único sorriso. Estou sozinho agora, só eu e o medo.

João Barros
Enviado por João Barros em 15/01/2019
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