Desventura

No percurso que faço ao voltar do trabalho sempre imploro que o tempo passe rápido, que eu volte em segurança e que de uma forma mística, uma hora ou outra, eu possa melhorar a condição de vida. Não costumo lembrar da saúde, afinal sou jovem e gozo das benesses possíveis da fase, menos ainda costumo pensar em outro alguém, sendo sincero, num momento em que me encontro no meio de tanta gente, o que menos desejo pensar é em gente.

Gostaria de finalizar aqui minha história, e até finalizaria, noutro dia qualquer, ou mesmo completaria com um breve relato que cheguei em casa sob as previsões do meu mantra, tendo como única consequência o encontro com a pele suave daquela que me oferece aninho após um dia tão cheio, ela a minha doce e amada cama, aquela que infelizmente ainda não terminei de pagar suas prestações.

A esse momento, caso não tenha perdido o interesse na sucessão de fatos irrelevantes, você deve se perguntar, qual o propósito dessa história?

Toda história tem que ter um começo, mas nem todo começo é fidedigno a sucessão de acontecimentos que constituem a verdadeira história. O tempo ou seus personagens, vez ou outra, costumam perverter, subverter ou até mesmo reverter os fatos, até que tais fatos não sejam pensados como o que são, talvez perder o sentido, sei lá, tornar-se outra história, outra coisa.

Fui surpreendido.

Enquanto praticava minhas boas tradições católicas, como bom homem que sou, me benzia a cada igreja que encontrava no meu percurso de ônibus entre os bairros, por incrível que pareça, minha parada era uma das últimas e quase sempre eu via aquele emaranhado de gente, que vez ou outra confrontava as leis da física, se desemaranhar e descerem rumo a seus destinos.

Um rapaz, tão jovem quanto eu, com fones de ouvido me olhou e me falou com um certo ar de superioridade: - você adora o deus errado.

Óbvio que fingi não ser comigo, lembram das três premissas? Voltar rápido, em segurança e melhorar de vida. Então, acho que nada que eu fizesse sobre o acontecido contribuiria para tais máximas.

Ignorei, claro! Afinal se tem algo que sou realmente bom, esse algo é ignorar. Continuei sentado. Apesar de já ter anoitecido, o calor era insuportável. E aquela quantidade de pessoas auxiliava no compartilhamento dessa temperatura.

Uma senhora idosa com sacolas de mercado, sentada atrás de mim, toca meu ombro e inclinou-se em direção ao meu ouvido. Diz sem nenhum pudor: - Você não pode ignorar para sempre que está adorando o deus errado.

Por um segundo arrepiei os pelos do braço até os pelos mais finos que subiam até o pescoço, assustei? Sim! Mas só podiam estar tentando zoar com minha solidão naquele ônibus, esperei por alguma risada, por alguém sinalizar que estava brincando. Esbocei um sorriso e perguntei a senhora – como assim? – A senhora fez cara de desentendida, perguntou o que eu queria, perguntei se ela tinha falado algo, ela negou acenando com a cabeça para os lados.

Não tive tempo de pensar sobre o ocorrido, quando a pessoa sentada ao meu lado me pergunta: - Gostaria de conhecer a verdade?

Nesse momento já dei como certo, era uma pegadinha, talvez algum programa de TV ou internet, estava sendo vítima de uma grande armação e tentei entrar no jogo para desestabilizar aquela ceninha e pôr fim a esta brincadeira.

Falei: - Gostaria sim! Porque não me conta agora? Tem a ver com o deus errado lá da senhora e do rapaz?

De imediato a pessoa sentada caminha em direção a saída do ônibus, como se não ouvisse uma palavra minha, ou como se conseguisse me ignorar perfeitamente.

Outra pessoa senta ao meu lado de imediato, dessa vez um homem de meia idade, com feições fortes de trabalhador, rapidamente inicia um monólogo:

- Sua amada bíblia está equivocada. Quem foi expulso do céu e levou um terço dos anjos consigo não foi lúcifer e sim o criador. Havia no início de tudo uma entidade superior, cósmica, inigualável e especialmente solitária, existindo perfeitamente ou imperfeitamente numa vastidão vazia, era uma incógnita, não compreendia como havia se formado, do que era formado, por que e desde quando estava ali...

Interrompi, falando acabou a brincadeira, não servirei de chacota gravada, quero saber onde estão as câmeras.

A enfermeira se aproximou de mim, entregou meus remédios e disse: - Desta vez ficarei olhando para conferir se o senhor não irá cuspi-los.

Não lembrava de ter cuspido os remédios, não era do meu feitio. Apesar de que eles afetavam nitidamente o meu desempenho no carteado junto aos meus colegas de ala. Eu não gostava de ser interno, carregava um grande esteriótipo consigo, mas ali eu encontrava uma paz que as paredes do mundo lá fora não forneciam.

A enfermeira se aproximou e coloquei a língua pra fora, provando que engoli tudo, ela sorriu de uma forma diferente e cochichou: - Não acredite em tudo que lhe dizem. Ele as vezes tenta apenas lhe confundir sobre a verdade.

Acordei subitamente, estava na cama da minha casa, ainda não havia chegado a hora de trabalhar, me belisquei, me olhei no espelho, parecia saudável, perguntei a minha esposa onde estavam as crianças e se aconteceu algo diferente. Ela relatou que balbuciei algo sobre deus errado e riu da minha insensatez.

Calcei meus chinelos e fui até a calçada, estava tudo como de costume, peguei algumas moedas e parti em direção ao mercado comprar alguns pães.

Claro que de imediato estava tentando entender o que havia acontecido, bom, tenho muito tempo para pensar, afinal essa é minha primeira semana velejando sozinho em alto mar ao redor do mundo.

Rangel Paiva
Enviado por Rangel Paiva em 15/01/2019
Código do texto: T6551180
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