Carmen Lúcia se preparando para um grande momento
Carmen Lúcia, mulher franzina, foi descer a estrada de terra. Como aspirava a perfeição, decidiu que seria adequado calçar as botas de couro ao invés das galochas de sempre. Vestiu também o casaco ideal para a situação: aquele verde-musgo que pertenceu ao seu irmão e agora lhe servia muito bem. Parou em frente ao seu espelho que refletia parte de um quarto impecável: a enorme cama envolta numa colcha completamente branca e almofadas de seda organizadas por ordem de tamanho; ao lado, uma cabeceira pequena e bastante modesta, mas que dava ao cômodo um luxo inusitado sendo preenchida por objetos que mal pareciam ter sido utilizados em algum momento: uma luminária arredondada feita de porcelana bastante brilhante, um pequeno caderno preto e ao seu lado um livrinho cuja capa estava escrita Droit Constitutionnel — Raymond Ferretti. Seus olhos exprimiam sentimentos intraduzíveis: poderia estar amedrontada por estar diante daquele momento pelo qual tanto esperou? Seria correto afirmar que sentia uma ardente alegria? Ou estaria apenas indiferentemente incomodada com uma mecha de cabelo que parecia estar virada para um lado diferente do usual? Tratando-se de Carmen, poderia ser tudo isso ou nada.
Após terminar de se arrumar percorreu o corredor que dispunha de quatro outros cômodos para entrar. Como queria sair de casa pela sala de estar, foi para a última porta à esquerda. Viu-se diante do espartano salão com móveis de cores neutras, quase como num daqueles sonhos em que o tema é a solidão e há cortinas brancas espalhadas pelo vento do lado de fora. Ao chegar à entrada principal de seu lar Carmen se virou uma última vez para realizar seu ritual de repassar a memória por três vezes até estar convencida de que se lembrara de levar tudo. Por um breve instante pareceu contemplar o silêncio que estava presente não só por todo ambiente como dentro de si. Percebendo então que era o momento de partir, passou pelo portal confiante das decisões que havia feito até então.
Passou pela cerca do pasto das ovelhas, pelo pequeno lago das carpas e pelo seu carro, um Renault branco, sem perder a atenção aos detalhes e sabendo que nada estava fora do lugar. Chegou ao portão de madeira e se preparou bastante serena para caminhar por um longo tempo. Deu os primeiros passos e parou por alguns instantes diante da ladeira. Pois então é isso, concluiu. Um pensamento assim parece simples e pouco elaborado, mas para Carmen Lúcia expressava suas fortíssimas convicções, praticamente inabaláveis. Com mais firmeza que antes voltou para a descida. Suas pernas não eram muito longas e por isso precisava dar pequenos saltinhos para passar pelos pedaços da estrada que não tinham barro. Havia chovido por quase todos os dias da semana, embora naquele momento o sol pairasse timidamente diante de algumas nuvens inexpressivas. Como tinha uma enorme experiência com a estrada não levou muito tempo para chegar ao pé do morro. Achou um bom exercício para aquele momento do dia.
Mesmo com sessenta e quatro anos, Carmen Lúcia preenchia seu espírito com os ares da juventude, e por conta de tal fato pôs-se a pensar que o cenário onde estava facilmente poderia ser uma estrada medieval que levava a um vilarejo místico. Estava no meio da mata, onde as árvores cobriam o céu e tudo cheirava a terra molhada. Enquanto seguia imaginando o enredo de sua recém-inventada história, encontrou o primeiro personagem: seu vizinho Romildo que segurava um carrinho de mão contendo um montinho de capim ainda molhado. Decidiu que seria um vassalo responsável por realizar a colheita da localidade e repassar ao lacaio que coordenava aquela região. Mais adiante, precisou suspender o exercício de distração para conversar com outro vizinho que surgia, Ronaldo, irmão de Romildo, para lhe indagar acerca do vazamento do cano que quebrou na estrada havia duas semanas. Certamente era uma temática tensa que exigia dela paciência, pois o homem poderia se esquivar do assunto. O homem lhe deu respostas pouco satisfatórias como “depois do feriado”, ou “pode confiar”, mas Carmen não quis se aborrecer diante daquele momento que haveria de ser tão importante. Ponderou e achou melhor deixar esse diálogo para outro momento.
Finalmente chegava à parte final de seu trajeto: o vilarejo. Como sempre, não havia pessoas na rua. Aquele local sempre parecia estranhamente sombrio, pois todos os vizinhos se conheciam, mas pouco havia diálogo. À sua esquerda, Carmen observava a casa de José Carlos construída sob um declive com cerquinhas baixas e tortas na frente. Pôde notar que a porta de casa estava entreaberta de onde alguma pessoa a observava de dento com um ar inquisitório. Apesar do ambiente hostil, Carmen não se abalava mais com aquele tipo de situação. Virou o rosto para o outro lado e seu narizinho pontudo deu uma torcida leve, quase imperceptível. Naquele momento, era apenas coração. Sabia que se aproximava cada vez mais do destino, e, embora os hormônios de adrenalina corressem pelo corpo, sua expressão era imponente. Aquela mulher, aquela senhora, aquela esfinge era impassível de ser derrubada.
O caminho da vila havia terminado. Carmen Lúcia não podia ser atingida, e naquele momento sentia-se capaz de entregar-se ao destino ali existente. Entre tanto ocorrendo dentro de sua cabeça teve milésimos de segundos para pensar nos relatórios que terminara de fazer pela manhã e que deviam ser entregues em breve. Seu rosto estava imóvel, mas seus lábios demonstravam um pequeno tremor, talvez por conta do café. Trate-se de se endireitar, pensou, deixando seu corpo completamente ereto e o rosto posicionado nem para o alto nem para baixo, mas penetrando tudo o que a visão poderia alcançar. Aquele era um dos momentos clássicos de Carmen, em que se pode vislumbrar com clareza todo o universo que carrega dentro de si. Era um retrato que ela mesma sabia que guardava a cada vez que vivia suas grandiosidades. Com os olhos rapinantes, deu seu último passo com as perninhas curtas. Não seria possível duvidar daquela mulher. Ela estava completamente preparada.