A CONSULTA

Naquele manchado corredor de paredes pálidas, esperava. As lembranças fervilhavam em sua mente, decidiu quase que voluntariamente pousar num canto escuro de suas memórias. A razão aconselhava-a a esquecer, mas sua compulsão pela dor obrigava-a a recordar. Sim, esse sofrimento era-lhe tão comum e essencial que parecia certificar-lhe de que estava viva.

Da memória, os gritos eram tão audíveis quanto os daquela noite. Arrogante, desapegado, gestos abruptos que lançara ao chão todos os objetos postos à mesa para a janta que deveria ser especial, e foi, jamais esquecera.

Seu peito ainda amargo, suas mãos ainda trêmulas, era um vício e como escapar disso? Nenhum detalhe perdido: as negações, a camisa azul marinho agora machada pelo vinho tinto português que respingara da taça de cristal por consequência dos gestos grotescos. O sapato marrom, mesmo tom do blazer importado, eram ambos parte dos presentes que recebera de sua amante, mas negava-lhe tudo. Gritava impondo-lhe o indicador e chamando-a transloucada. O tempo passara, até conseguia não chorar ao recordar, também já não lembrava o ano do ocorrido, mas as palavras (...) estas, não conseguia olvidar. Assistia as histórias dos amigos sendo escritas e seus detalhes entalavam em sua própria história raízes pretéritas, fantasmas que lhe assombravam.

Seu vestido florido, seu escarpam bege, o sobretudo verde lodo, seu novo corte de cabelo e o velho batom vermelho; contemplava uma escultura de Don Quijote de La Macha e ouvia Itzhak Perlman enquanto aguardava-o. Não pressentira que descobriria naquela noite a verdade. Era sensível e geralmente previa quando algo ruim aconteceria, mas não foi assim naquela noite. Culpa-se, julga-se desatenta, mas a realidade é que naquela noite esteve mais atenta como em toda a sua vida jamais estivera. Leu os seus olhos, seus gestos, o balbuciar de seus lábios, ali estava ele, réu, não confesso, não precisava afirmar absolutamente nada. Embora negasse, as certezas dela deixavam-no descompassado, não dominava sua reação. Ela não recorda o fim da discussão, mas as palavras que ouviu jamais esqueceu. Dali à frente escutou pedidos de perdão, mas eram tão baixos, quase que silenciosos, por mais que repetisse não soavam tão audíveis quanto as palavras de desprezo que ouvira. Decidiu acatar o perdão.

Decidi perdoar, preciso esquecer, mas como o farei se sua postura abrasa minha memória pondo-a em chamas e resgata as dores - pensava ela ainda ali naquele corredor.

- Ana Ludovico, sua vez - disse a assistente da médica tolhendo o momento de reflexão e dor e convidando-a a adentrar o consultório.

Amanda Danielle Carmo
Enviado por Amanda Danielle Carmo em 08/01/2019
Reeditado em 27/02/2019
Código do texto: T6545564
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