Diamantes - Meus cavaleiros audazes

Se a pedra de grande valia

Que mesmo em bruto

Ninguém joga ao acaso

Fossem eles diamantes

Seriam todos lapidados.

CAPÍTULO I

PRIMEIROS PERSONAGENS

Meu corpo de repente travou. Meus olhos se estagnaram no vazio e um medo feroz invadiu o meu peito provocando um calafrio que subia pela espinha e fazia disparar o coração. A garganta secou, minhas mãos iniciaram um tremor incontrolável e eu suava frio e abundante. Quando parei no corredor em frente à porta da sala onde vinte e cinco alunos esperavam pela minha aula, disse para mim mesmo que não podia enfrentar aquilo tudo de novo. O medo foi crescendo e de repente tudo apagou. Não sei quem me trouxe para casa. Só sei que estou aqui com Lívia perto de mim, cuidando de mim.

- Quer me ouvir?

- Quero meu amor, fale.

- Então, senta aqui, pertinho de mim. Dá tua mão. Que delícia esse chocolate quente. Você é mesmo um anjo. Tome um copo também enquanto me ouve. Tem biscoitos de coco no armário. Trouxe-os na quarta, lembra?

Imagina querida, trotando no pasto como um grande cavalo de raça, um menino puro sangue. Esse menino, esse mesmo, sou eu. De pronto, ao levantar a cabeça que se ocupa em olhar as próprias patas, avista a cerca que divisa a propriedade do avô com a chácara do curtume. Num repente, desvia-se do choque com o arame farpado que se aproxima. Um dia ainda ganho impulso bastante para saltar por cima dela, pensa. Enquanto corre, mira os olhos no chão onde procura em vão pela imagem que se ali estivesse, serviria para corrigir as imperfeições dos movimentos e também para dar classe ao ato de trotar. O céu cinzento, porém, impede a projeção da sombra. Mesmo assim, galopa com uma alegria tal que só se compara à das cachoeiras. Pensa em relinchar, contém o impulso. Não o faz por vergonha de alguém que não vê, mas imagina por ali escondido.

Treze anos naquele tempo era ser criança ainda. Criança de habitar o sonho como a uma casa aconchegante e segura que acreditava ser de verdade. Não tinha relógio, mas, pelo tempo em que ali se encontrava, podia deduzir ser pouco mais de três da tarde. A avó devia estar preocupada com a minha ausência. Despedi-me do cavalo que ficou ali como uma roupa que vestiria no dia seguinte e caminhei em direção a casa. O cavalo a partir daquele dia estaria exatamente onde eu estivesse e viria toda vez que o invocasse para galopar sem canga. Correr livre, sem peso de carga ou de cavaleiro é o que sabia haver de melhor na vida. Naquele dia, cavalo e montaria foram o mesmo ser. Vontade e músculos tiveram a mesma força e liberdade. O cavalo foi o segundo personagem que vesti, sem nome e sem vontade própria. O único irracional. Os outros também da mesma maneira, embora inteligentes, agiam pela minha cabeça.

Não era comum estar sob os cuidados da minha avó com quem passei uns dias naquele ano de 1968, pois era com a minha tia que me criava como mãe, que morava a maior parte do tempo. Quando não, estava junto dos meus pais, que enciumados disputavam o meu amor. Com tanta gente a disputar a minha posse, até que dá para entender hoje, o instinto esquivo e também as fugas constantes, que já caracterizavam a minha personalidade.

Minha avó, sem que eu a visse, olhava pela fresta da porta da cozinha e vendo-me chagar pé ante pé, ressabiado, evitando esbarrar em objetos espalhados na varanda, surpreendeu-me:

- Muito bonito, seu Rubem! Onde o senhor esteve até agora? Menino, você quase me mata de preocupação! Sai sem falar para onde vai, nem quanto tempo vai demorar... Se acontecer alguma coisa, seu pai na certa põe em mim a culpa por não ter te olhado direito.

- Tudo bem vó! Estava no pasto brincando e de tão contente nem vi o tempo passar. Perdão. Não faço mais isso.

- Não tem tarefa de escola não?

- Não! Só tenho que estudar um ponto novo, mas, posso fazer a noite depois de jantar.

O primeiro personagem lembra-me bem. Não devia ter mais que cinco anos quando o encarnei. Acho que ele era moço adulto. Pelo menos podia namorar a Maria com quem entrava pelo corredor da casa de tia Elza conduzindo-a debaixo do braço. Ou, talvez quem sabe na minha imaginação, era permitido a um menino de tenra idade andar de namoro com moças maiores do que ele. Não descarto a hipótese de ter reduzido a moça ao meu tamanho. Não lembro agora as dimensões daquele “eu” criado na ocasião. Faz muito tempo. Só sei que tinha a coragem que eu não tinha. Sendo ele, conquistei a minha amada e podia andar com ela livremente pela sala, alheios aos olhares dos adultos. Estava apaixonado pela jovem magra, alta, de cabelos dignamente negros e olhos meigos da mesma cor. Devia ter uns dezesseis, a filha do seu Alécio. Quem passasse na rua e me visse caminhando com ela pelo corredor, veria um menino com o braço direito abraçando o nada e falando sozinho.

Na minha meninice, meus cabelos eram loiros bem claros, meu corpo fino e comprido. Altura acima da média da minha idade. Os olhos eram-me verdes e rendiam elogios e insinuações das moças que juravam me esperar crescer para casar comigo. Bastava isso para me causar rubor na face e um desconforto tamanho que tinha vontade de fugir de onde estivesse. Certa feita, meu tio a quem chamava de pai, vendo entrar em nossa casa, Biondina, a filha do vizinho, olhou para mim e piscando com o olho direito falou bem alto de modo que ela também escutasse:

- Olha só a moreninha, Rubem! Bonita não?

Aquilo me deixou tão desconsertado que esmurrei seguidas vezes o cano do quadro da bicicleta enquanto que ela simplesmente sorria não entendendo a minha reação.

É difícil descrever o que eu sentia nessas ocasiões. Era como se fosse muito feio sentir atração por uma menina. O simples fato de ela presumir ou alguém que fosse inferir meu tesão juvenil me desencadeava um tipo de emoção própria de um flagrante em ato extremamente vergonhoso. Meus personagens tinham mais coragem do que eu, ou, ao menos não estavam expostos a esse medo que tento a esmo descobrir a origem. Foram muitos durante a minha vida. Médico, industriário, comerciante, artista... Sedutores, destemidos, poderosos. O que quer que fossem tinham em comum a ousadia. Um deles, um famoso cantor e compositor, atendia assim como todos os outros, pelo meu próprio nome:

- Com vocês, o genial Rubem!

Esse durou bastante tempo. Seguramente uns cinco anos. Sim, os meus personagens tinham um tempo de vida e cada um durava o tempo suficiente para saciar uma carência específica que geralmente o gerava. O primeiro, quando amei Maria, viveu uns dois meses mais ou menos, até que me desapaixonei e não mais precisei dele. O segundo, o cavalo, eu acho até que ainda existe. Faz tempo que não entro no mato. Na última vez que o fiz, não resisti à tentação de trotar. Já vesti um charme irresistível e com ele resisti à tentação de ter todas as mulheres que se atiravam aos meus pés – e não era poucas - só para me oferecer exclusivamente a Estela, que nunca soube disso. Depois, a Rosicler, minha Rosicler que morava na infância. Sentava na carteira ao lado da minha no quarto ano da escola e me fascinava com as pernas finas de menina e seus cabelos aloirados como fios de ouro que caiam sobre os ombros adornando-os. Com ela vivi abraços apaixonados, beijos ardentes, todos imaginados. Eram beijos de lírio. Dançávamos ao som de um blues que soava ao longe vindo do alto falante da quermesse vizinha à escola, que àquela hora testava o som para funcionar a noite. Seus olhos vivos e castanhos, penetravam a minha alma sem jamais me ver a não ser no futuro. Foi com ela que tive um filho aos onze anos de idade.

CAPITULO II

NOVEMBRO DE 1969 - LORENA

Dia de Finados de 1969. Minha tia acordou bem cedo. Coou o café, foi à padaria, preparou os lanches de pão com mortadela que comeríamos durante o trajeto e rezou pedindo a Deus que tudo corresse bem em nossa peregrinação pela estrada dos Britos. Tudo isso antes de nos acordar. Meus primos - irmãos de criação e de afeto - e eu despertamos sem nenhuma reclamação, ao contrário do que acontecia quando era dia de escola. Gostávamos daquele caminho e de tudo que havia nele. O rio do matadouro municipal, as árvores, as pessoas em procissão e as bancas de melancias com seus feirantes que as vendiam inteiras ou em fatias, ao gosto do freguês. Os barrancos em escarpa ao lado da estrada apontavam o desnível entre ela e as terras dos sítios e chácaras a sua beira. A fé das pessoas no poder de cura dos irmãos Brito, beatificados pelo povo após a morte por linchamento, transformava o dia de finados em uma verdadeira romaria à sala dos milagres ao lado da igreja do Cemitério das Cruzes, conhecido como Cemitério dos Britos. Desativado na época, o campo santo ficava a sete ou oito quilômetros do centro da cidade de Araraquara, para onde se dirigiam pessoas vindas de todos os bairros, sítios, fazendas e também das circunvizinhanças.

Meu primo, Gilberto, era da idade de dez anos, quatro a menos que eu. Peralta que só ele, vivia a fazer estripulias, fato que tornava rotineiro o que precedia cada saída a passeio: verdadeiros sermões da minha tia e sérias ameaças de surra de meu tio Gersindo. Minha prima, Fabiana, tinha apenas cinco. Anjinho ainda era mais obediente e comportada. Andava a dar as mãos para não se perder. Tia Elza, grave e altiva com os filhos, não fazia distinção entre eles e eu, tanto na disciplina quanto no amor. Era submissa ao marido, para ela inconteste; justificado pelo bondoso coração a despeito de que às vezes ficava violento sob efeito do álcool. Os cabelos apresentavam poucos fios brancos que podiam muito bem passar despercebidos aos mais desatentos. Era magra e ágil o que lhe dava um ar de mulher segura e destemida. Os olhos, porém, azuis de mar, límpidos, fitavam com ternura e revelavam aos mais sensíveis, uma alma frágil, de total desprendimento e entrega.

Tio Gersindo, de nobilíssimo coração era um caso a se pensar. Como se fosse um vício chegava sempre alegre do serviço e o mundo então parava. Ninguém mais falava para ouvir o som que ele assobiava. Na voz havia certo tom de arcanjo quando aos meninos chamava de meu anjo, e mesmo que não as visse vestidas de manta, toda menina era “minha santa”. Tratava a todos não pelo nome, mas a qualquer que chegasse e mesmo àquele que era da paróquia o padre, de compadre. Tinha um único defeito: às vezes bebia descontroladamente, ocasiões em que perdia o senso, a paciência e o controle.

Saímos de casa as oito e dávamos os primeiros passos quando ouvimos:

- Bom dia dona Elza! A senhora vai ao cemitério dos Britos? Era dona Dorvalina, visinha de muro que encostada no portão do lado de fora da casa, esperava o verdureiro. Junto a ela estava Lorena, a filha caçula de uma prole de doze.

- Vou sim, dona Dorvalina! Vamos?

- Não posso! Viriato está trabalhando hoje e vem almoçar em casa.

- Mãe, me deixa ir junto com eles? Nunca fui e gostaria de conhecer. Todos aqui de casa foram, menos eu. Pedia Lorena com insistência.

- De jeito nenhum, dar trabalho para dona Elza. Já não lhe chegam seus pentelhos?

Eu, que nunca havia reparado o quanto era linda aquela jovem, comecei pelos olhos: grandes e negros como jabuticabas. Olhavam para mim com a inocência dos olhares infantis, porém, com o langor inconsciente das insinuações imaginadas. Depois, os cabelos negros como carvão, de Cleópatra, que deitavam na testa uma franja a inquietar meu coração. Sobre os ombros, caiam curtos a contrastar com a pele branca das costas que macia exuberava entre eles e o decote do vestido. A boca, entreaberta como a boca dos bebês exibia os lábios mais lindos que os meus olhos já haviam contemplado. Num instante imaginei minha boca colhendo as sensações do contato com eles. Devo ter corado. Olhei para o chão enquanto pedia a Deus a dádiva da companhia daquele anjo encarnado.

- Se a senhora permitir, acho até bom que ela vá conosco! Pode me ajudar a cuidar de Fabiana! – interviu minha tia.

- Então vá! Mas olha lá, heim! - Obedeça a dona Elza e comporte-se como gente - Ralhou dona Durvalina enquanto tirava uns trocados da carteira de lona surrada para dar a menina.

- Pode ficar tranquila, Lorena já é uma mocinha. Sempre comento em casa a educação que vocês dão a ela. Tão faceira... Até logo dona Durvalina, voltamos para a hora do almoço!

- Até! Obrigado dona Elza! Que Deus os acompanhe.

CAPÍTULO III

UMA ROSA A MAIS NO JARDIM

Lívia, trêmula e branca de susto, perdida a pensar em como deveria proceder, olhava nos meus olhos e dizia:

- Desculpe, mas, falar assim, na minha cara de outra mulher, descrevendo seus dotes em detalhes carregados de impressões que ao que parece ainda lhe ateiam fogo, me deixa tão insegura que chego a duvidar que tenha de mim no futuro, um retrato tão bem pintado. E as outras? Ainda que somente mencionadas sem tantos detalhes, suas histórias com elas são lindas e se, todavia, fictícios os personagens, as mulheres são de carne e osso e os sentimentos reais.

- Mas você não sabe querida? Entenda que é passado agora e só me vem à lembrança como parte de uma coleção de fatos que certamente hão de servir ao analista. Saiba meu anjo, que hoje na verdade a minha vida é você. Meu tudo, minha esperança. Minha companheira agora e para sempre.

- Então fale! Abra as portas a tudo o que está ai dentro te ferindo, escravizando. Mas saiba que vou te ouvir nas lembranças de outros amores só uma vez. Depois é com o médico. Minha compreensão só vai até onde eu possa te ajudar, mesmo assim, tem que ser rápido antes que o meu ciúme a desmonte e não me culpo por isso porque não há mulher que suporte ouvir seu homem falar de outra com tal volúpia que chega a salivar enquanto fala. Quero que entenda que sou eu quem está aqui ao seu lado e estarei todos os dias enquanto durar nosso amor. E bem no fundo do meu coração, espero que seja para sempre. Vamos sair um pouco? Passear no jardim da praça ai em frente. Ainda falta muito para a hora da consulta.

- Está bem, preciso mesmo respirar ar puro, tomar um pouco de sol. Desde que voltei do surto não saio deste quarto e ainda te seguro comigo. São duas da tarde e estamos apenas com o chocolate que tomamos de manhã quando ainda não eram dez horas. Como é bonito isso aqui. As roseiras estão todas floridas: vermelhas, brancas, amarelas. Esse gramado renovado de verde fica ainda mais cheio de viço visto assim ao céu da primavera. Vendo você no meio das rosas concluo que se faltava ao jardim alguma coisa, já esta no seu lugar. Não duvide que diga a verdade.

A me ver falar assim, Lívia sentiu que era só dela o meu coração e não mais das moças que também se enamoraram dos meus personagens. Nos abraçamos, beijamos. Imaginamos um amor com a luxúria dos desesperados ao voltarmos para casa. Nossos olhares naquele momento contraiam toda a juventude de nossos corpos ao tamanho de um átomo extremamente denso, pronto para explodir numa expansão medonha, na conjunção de todos os sentidos, depois tudo de novo e outra vez amar sem parar, insaciavelmente.

- Alguns casais perdem o melhor tempo da vida a dois, minha querida, ora dormindo só, ora defendendo seu ego, ou julgando indecentes os desejos mais legítimos. Quero te amar todos os dias até quando nossos corpos já miúdos de velhos não puderem mais. Então todas as noites, hei de acariciar teu rosto, tuas mãos, colher teu gesto. Ai então, o teu sorriso branco, cheio de ternura sem palavra me dirá: ainda te amo!

CAPÍTULO IV

DE VOLTA AO DIA DE FINADOS

A estrada dos Britos naquela manhã parecia mais cheia de gente do que de costume. A subida íngreme acelerava a respiração dos peregrinos e encurtava muito a conversa. Apesar da falta de ar, as pessoas falavam suficiente alto para sensibilizar meus tímpanos e claro o bastante para que meu cérebro processasse o conteúdo. Tudo em um bloco separado daquele onde estava a imagem de Lorena que caminhava ao meu lado.

Naquele caminhar compreendi as imperfeições humanas nos atos e palavras daqueles desconhecidos que andavam perto do nosso grupo. Concluí que só é preciso agir e falar para que elas se revelem em nós, pobres presunçosos. A soberba de um velho que se achava acima do homem comum só porque ia à missa todos aos domingos e se confessava com frequência. A hipocrisia de uma mulher que falava com eloquência à outra da gula de um indivíduo que conhecia. Perto dela, o filho acabava de devorar sozinho o lanche que era para os três. Maledicência de um homem acerca da filha de certo José, que teria engravidado de um namorado falastrão que deu no pé. Iam falando e caminhando, rezando e atirando, chorando e mastigando.

Perto de mim, Lorena caminhava com passos tão angelicais que quisera fossem dados na palma da minha mão. Quando falava qualquer coisa que fosse, era uma música fraseada com tal encanto, que desabrochava em cores de arco-íris. Olhava às vezes para mim com olhar de cumplicidade através daqueles enormes olhos negros que cada vez mais me faziam crer seu escravo. Sim, eu estava apaixonado. Perdidamente apaixonado após não mais que meia hora caminhando ao seu lado. Tão menina que os sonhos que tinha à tarde sequer resvalavam na mulher que nela dormia. Todavia, nos meus quatorze anos queria apenas protegê-la até que crescesse um pouco mais e enquanto isso se me fosse permitido, no máximo ousaria beijos no rosto e abraços mais fraternais do que amantes. Foi naquele exato instante que pus o meu braço sobre seu ombro e ela a esse meu gesto sorriu condescendente. Falei a tia Elza que estávamos apaixonados e que não se preocupasse com o fato dela ser tão criança. Eu esperaria uns três ou quatro anos para nos casarmos. O sorriso de Lorena pisoteava meu coração porque debaixo do meu braço estava apenas a minha imaginação. Assim como seu cheiro que nada mais era que fragmentos retidos em minha memória quando no tumultuo nos encostávamos. Usava-os para compor as cenas.

Minha vida mudava naquele dia no sentido de não mais me contentar em ter a minha amada somente na imaginação. Lorena não me bastava em sonhos. Queria desesperadamente tê-la em meus braços, como disse, mesmo que para viver um amor inocente que fosse amadurecendo dia a dia até que irrompesse adulto no momento certo.

Voltamos para casa e nos despedimos. Vi Lorena abrir o portão e entrar pelo longo corredor que levava à casa de fundos onde morava. Depois disso, meus contatos se limitaram a vê-la ao portão nos fins de tarde. Meu amor por ela aumentava a cada dia. Na mesma proporção, minha timidez se agigantava e anulava a chance de ficarmos juntos. Até que um dia afinal, mudou na rua uma nova família que se avizinhou a sua casa. Havia um rapaz quase que da mesma idade dela de nome Roberval. O que aconteceu então, não é preciso que diga. Adianto, porém, que o rapaz lhe estendeu galanteios, ao contrário de mim, sem o menor constrangimento. E ela, alheia ao meu sofrimento, arreganhou-lhe os dentes com toda a vaidade de menina cobiçada. Por mais de três anos sofri de um amor platônico que pensei que não tivesse mais fim. Ela ficava cada vez mais bonita e quanto mais bonita mais distante, de modo que todo o meu esforço foi concentrado para esquecê-la. Casaram-se três anos depois.

CAPÍTULO V

NO QUARTO COM LÍVIA

- Foi uma pena querido, sinto dizer, mas você foi um bundão. Lorena sempre esteve lá. Sua boca, seus braços, suas pernas, seus lábios. O tempo passou, os cães ladraram, os homens amaram. O rapaz chegou e a encontrou livre porque você deixou. Depois disso só lhe restou a esperança e a ilusão de que tudo terminasse entre eles, e como não aconteceu, maldisse a sorte por não lhe ter sorrido. Volta no tempo logo depois daquele dia de dia de Finados: o que era preciso? Declarar o seu amor por ela, meu querido. Certamente que não rolou. Não teve coragem. No fundo, por medo, seus personagens te bastavam. Eles sempre foram maiores que o seu amor. Deve ter cuidado deles como verdadeiras pedras preciosas. É a ilusão da masturbação. Na cabeça uma linda mulher que assim que você goza se dissipa no ar.

- Não te desminto, Lívia. Sei que fui um medroso. Não fosse você chegar em minha vida, até hoje não teria beijado uma mulher. Foi quando eu mais precisava, quando já não suportava tanta solidão conheci tua boca, toquei os teus seios e nas tuas entranhas quis desconhecer todas aquelas de quem lhe falei. Na varanda da casa estiro a rede, me deito finalmente em paz e repouso minha cabeça já cansada de construir tramas sem futuro.

- Querido, não ouviu? Batem à porta!

- Quem é? Entra!

- Sou eu filho tua mãe! Estou entrando. Nossa que quarto escuro! Venho avisar que está quase na hora da consulta, não vá se atrasar. O Guimarães ligou perguntando de você. Disse que ficou muito preocupado com o modo como parou com olhos arregalados na porta da sala de aula e como se manteve imóvel até que a ambulância chegasse e o trouxesse para casa. Respondi que estava melhor e que ia consultar o doutor George ainda hoje. Pediu para te dizer que não se preocupe com o trabalho. Que descanse até que se sinta melhor e que cuide da sua saúde. Concluiu dizendo que pode ser stress, que já passou por situação semelhante. Se achar melhor, é só falar com ele, que lhe adianta as férias. O que aconteceu filho? Estivemos preocupados com você, o dia todo. Porque não almoçou? Não saiu desse quarto desde que chegou de manhã. Não falou com ninguém, não pediu nada, não quis falar conosco sobre o ocorrido no trabalho. Esteve aqui o tempo todo, só.

Rubem, assustado olhava atônito para a mãe. Olhar perdido a procurar explicações. Seus olhos buscavam em vão por Lívia que sequer havia deixado o seu perfume no ambiente. Semblante perturbado, consciente da verdade que não podia contrapor, achou-se doente. No quarto estavam apenas a mãe e ele. A luz acesa a pouco à chegada de dona Laura, mostrava a cortina esvoaçando ao vento, à janela entreaberta.