1099-MILAGRE DO DEUS CATÓLICO-

Ah! Minha bucólica cidade Vento Leve, quantas saudades!

Nem pequena nem grande, com economia forte de café com leite e pequenas indústrias de laticínios e doces. Cachaça da boa e peixe fresco pescado da lagoa Espelho Dágua

Povo simples e culto ao mesmo tempo, com eminências aposentadas e idiotas em franca atividade.

A Praça da Igreja — denominada oficialmente de “Praça Comendador Honestino Severiano de Carneiro Leão”, que poucos sabiam e ninguém usava — era o ponto de referência para tudo o que acontecia e para todos que transitavam pela cidade.

Nela tudo acontecia. Nela tudo se dizia. Nela tudo repercutia.

A frequência era da maior heterogeneidade (ops!), quer dizer, todas as pessoas por ali apareciam, pobres, ricos, cultos, idiotas, políticos e eleitores, católicos e protestantes, enfim, era o umbigo do mundo para os ventolevenses.

Um grande retângulo, cercado por palacetes residenciais, prédios de três e quatro andares onde funcionavam o hotel, o cinema, a prefeitura, a câmara dos vereadores, o fórum da justiça, o cartório, lojas e bancos.

As excelências culturais sentavam-se nos bancos de cimento. As inúteis nulidades políticas reuniam-se na câmara dos vereadores. Os fieis católicos frequentavam a Igreja de São Paulo e São Pedro, havendo os devotos de Paulo e os devotos de Pedro, que constituíam facções internas não reconhecidas pelo padre Teófilo de Deus Filho — nome de batismo e de registro civil. Os protestantes (conhecidos como crentes) frequentavam o templo luterano. Igreja católica e templo luterano ocupavam, cada qual, um dos extremos do quadrilátero, ficando, pois, uma de frente para outra. Posições que realçavam as diferenças de crenças.

Houve um tempo em que o prefeito Major Vicentino Cândido descuidou completamente do trato da cidade, interessado que estava mais na política do Estado do que no servir à população de Vento-Leve. As ruas não eram capinadas e o mato crescia vigoroso nas sarjetas. A Praça da Igreja virou um capinzal, alto, verde, bonito de se ver.

A população, bastante acomodada, não se queixava do desleixo da autoridade municipal. Pelo contrário, era usada por alguns carroceiros como pasto para seus animais, enquanto aguardam trabalho.

O professor Sepúlveda Tremembé — nome de batismo e de cartório – era um crítico mordaz nas palavras e gozador nos atos, conseguiu, não se sabe como, um casal de coelhos que soltou no capinzal da praça. Passados uns seis meses, os simpáticos animaizinhos haviam se multiplicado de tal maneira que passou a ser objeto de brincadeiras, correrias e até desconforto para os pachorrentos usuários dos bancos de concreto.

Lulu Bigodinho, filho meio retardado do zebuzeiro Jovanildes Mendonça, que vivia confinado no palacete mais imponente da praça tinha uma espingarda de caça, com a qual passou a atirar nos coelhos. Um perigo, pois poderia atingir pessoas na praça ou fazer vítimas com balas perdidas.

Foi o que aconteceu com um projétil de sua espingarda. Numa tarde de domingo, estando a praça bem frequentada, Lulu deu um tiro que foi atingir a porta da casa do doutor Salustiano Curantor, eficiente médico, porém um tanto simplório para as coisas práticas da vida.

Ao voltar do hospital, viu o pequeno furo circular, bem feito na porta de entrada, á altura dos olhos de um adulto médio.

Ora, já fazia algum tempo que o doutor Curantor estava pensando em colocar um olho mágico na porta, aquele dispositivo que permite a quem está dentro de casa, observar quem está batendo à porta.

Ao se deparar com a abertura e não querendo sequer cogitar a causa, foi logo atribuindo a causas sobrenaturais.

—A força de vontade faz maravilha. Eu pensava tanto no tal olho mágico, que acabou acontecendo. Um autêntico milagre do pensamento positivo.

Católico fervoroso, contou ao pároco em primeira mão o ocorrido.

— Foi um perfeito milagre da força do pensamento. — disse ao padre.

Quando ouviu a palavra milagre o padre não quis nem ouvir o resto. Já passou a pensar no sermão do próximo domingo: um milagre havia ocorrido em Vento-Leve!

O fato tomou conta da cidade gerando comentários e discussões. Que seria, que não seria? Um milagre verdadeiro?

O pastor da igreja luterana, reverendo Jackson, avesso dogmático aos milagres propalados pelos católicos, atinou logo com a coisa.

— Este buraco é o resultado de uma bala de fuzil ou espingarda. Nada de milagroso. O Lulu vive dando tiros a partir da janela do seu quarto, no palacete do pai. Com toda a certeza, errou o tiro e furou a porta do doutor Curantor.

Aquilo foi considerado uma heresia pelo padre.

— Como, se ninguém viu, se ninguém ouviu nada? Foi milagre sim. Milagre dos bons.

E pensando expor um pensamento tão forte como uma bula papal, disse, na missa do próximo domingo, com toda a força e máxima convicção:

— Foi, sim, um milagre. Maldito quem não crê. Foi um milagre do NOSSO Deus Católico Apostólico Romano.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 30 de novembro de 2018.

Conto # 1099 da Série INFINITAS HISTÓRIAS.

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 29/12/2018
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