O muro dos milagres

Saíra de casa ao meio-dia. Nuvens carregadas davam lugar ao sol brilhante e ao sopro de tristeza que agraciava as folhas de sua angústia.

Anselmo não queria ficar com Lucinda. O ambiente não era o mais propício para o momento que passavam.

Parara no primeiro bar aberto que encontrou. O local estava lotado. Aproximava-se da uma hora da tarde. No fundo do estabelecimento uma densa névoa de vapores de cigarros ofuscava a imagem, que dada a intensidade tornava-se possível cortá-la com uma navalha. Homens sem face jogavam cartas. Os murmúrios e os embates acalorados eram o cartão de visitas daquele amontoado de desocupação dominical.

Próximo ao balcão, em uma mesa, um senhor, com a cabeça caída sobre o ombro e recostada na parede dormia, expondo uma translúcida cascata de saliva que se estendia até o peito, onde uma mancha úmida, disforme e amarelada, causava repugnância a qualquer um que se deparava com a cena.

Nas outras mesas, repletas de copos e garrafas, o quadro era mais ameno. Numa falavam de futebol, onde os rubro-negros prevaleciam frente aos tricolores de um santo, outros tricolores eram caçoados por alviverdes; noutra mesa a política era a temática, pois João era mais honesto que José, e Antônio, que era filho do falecido J. Moraes se sobressaía à esposa de Manuel Carrera; na mesa seguinte a vida alheia tinha sua anatomia rebuscada, e por tal, o Mário não mais aparecia para jogar bilhar, também pudera, Joana caíra nas graças do espanhol...

Anselmo, alvejado de todos os lados, assentou-se ao balcão. O dono do botequim questionou o que desejava. Anselmo pediu duas doses de vodca.

O proprietário era um sujeito rude, de proporções gigantescas, bochechas vermelhas e brilhantes, olhos pálidos e sôfregos, lábios caídos, calvo e de orelhas desproporcionais.

O burburinho, o barulho das bolas de bilhar, as brigas nas cartas e o ambiente tumultuado, fez Anselmo, de um só gole, ingerir a dose dupla de acalento, pois existem determinados momentos na vida que a vodca se transforma em substantivos para os mais variados fins. Pagou e saiu.

Resolvera caminhar sem destino para mascarar o sofrimento...

Havia cinco anos estava amasiado com Lucinda. Não tinham filhos. Somente a mulher trouxera do casamento anterior Marcos. Era um bom rapaz. Inteligente, calmo, porém inocente e introspectivo. Anselmo o tinha como filho, gostava mais do garoto do que a mãe, que tinha total aversão ao rapaz, tudo por conta do ódio que guardava do pai do garoto.

Lucinda obrigara Anselmo a internar Marcos em uma instituição de tempo integral, em que o “aluno” tinha direito à visitas todos os meses, e poderia passar um final de semana em casa trimestralmente. Para Lucinda isso era a solução para o enfado chamado Marcos, era o alívio de sua cruz às costas e, não obstante, a subtração de um incômodo, mesmo que de tempos em tempos aparecesse.

Marcos fora levado ao internato pelo padrasto. Anselmo minimizava o sofrimento da distância, prometendo que todos os meses o visitariam, e que lhe enviaria um dinheiro extra para suas necessidades fora do que o internato provia ou, simplesmente, guardar para o dia em que fosse embora. O rapaz chorava.

Mesmo aos quatorze anos, era um garoto de uma inocência de dar dó. Acreditava em tudo o que lhe diziam. No colégio que frequentava, no período matutino, era motivo de risos, brincadeiras e exploração dos colegas de classe.

Lucinda sorria ao ver o “filho” arrumando as malas. Anselmo, recostado ao pilar da varanda, acompanhava, absorto em angústia, o bailar azul-cinza da fumaça do cigarro, que trazia a sua mente seus tempos de infância. Marcos terminara de arrumar as malas, cruzou a sala; sua “mãe” encontrava-se sentada ao sofá. Em uma das mãos uma generosa dose de uísque, na outra, colada aos lábios, dava luz a espectros tortuosos e horripilantes através da névoa do cigarro, prostrada tal qual estátua, com um riso luxuriante nos olhos verdes e redondos, emoldurados pelo dourado dos cabelos cacheados e volumosos.

O Táxi chegara.

Anselmo abriu a porta da sala e avisou que logo voltaria. Lucinda fez um sinal positivo passando a língua nos lábios vermelhos e carnudos, tendo nos olhos uma inundação lasciva e preguiçosa.

Marcos não se despediu.

Os dois entraram no táxi. Anselmo comunicou ao motorista o destino. Este afirmou com a cabeça e saíram

Durante o trajeto Marcos e Anselmo não trocaram uma palavra sequer. Mas seus olhares perdidos no nada absoluto transpareciam um mundo deteriorado e à beira do colapso. O rapaz, por trás dos olhos inundados de ressentimento, assinava o livro do abandono e do esquecimento gradativo; o homem, de olhos fechados, pensava na infância, e no caminho que percorrera até o dado instante de se reencontrar com o passado.

Pararam em frente à Instituição de Ensino e Socialização Pe. Antônio Vieira.

Anselmo permaneceu no táxi por alguns instantes, enquanto o motorista apanhava as malas de Marcos. O homem fez sinal ao motorista que aguardasse um momento. O rapaz o esperava estático frente ao portão. Anselmo parou ao seu lado. Os dois observaram com ansiedade por entre as grades da entrada da instituição.

Era uma edificação enorme. Provavelmente dos tempos do Império. À porta principal, estendia-se uma espécie de hall de entrada com proporções menores que o restante do prédio. No andar primeiro, encontravam-se as repartições administrativas; no segundo, as salas de aula; no terceiro, os dormitórios dos internos. Ao lado esquerdo, um campo de futebol e a pista de atletismo, ao lado posterior à piscina (desativada e coberta por um viscoso musgo verde-negro), alguns bancos e mesas para estudos e horas de lazer.

Na mente de Anselmo toda a infância e uma parte da adolescência. Na alma de Marcos a esperança de sair antes mesmo de ter entrado.

Os dois abraçaram-se ternamente.

Marcos chorou.

Anselmo segurou as lágrimas.

O táxi se fora. O rapaz foi conduzido aos procedimentos padrão e teve a mordaz certeza, naquele momento exato, de que sua vida e seus sonhos encontravam-se encarcerados como planta em jardim. Contudo, só restava saber qual seria o tratamento do jardineiro.

Anselmo chegara a casa. Lucinda esperava-o, com um riso ébrio e o corpo quase despido de roupas, pois o pudor há tempos se fora.

Balbuciava frases derramadas, quase adormecidas. A garrafa de uísque estava quebrada ao lado do sofá; no cinzeiro, transbordado de cinzas, as bitucas manchadas pelo batom vermelho davam um tom vulgar ao local, muito semelhante a um prostíbulo barato. Na parede, o retrato de Lucinda quando jovem apresentava-se com uma inscrição feita por objeto pontiagudo, que fazia menção à vida desregrada de outrora.

Ele a tomou nos braços. Tinha o peso do erro. Levou-a ao quarto e a pousou na cama. Ela dormia o sono da angústia e do arrependimento. Anselmo encarava o abismo do remorso, e o abismo retribuía com escárnio.

Procurou algo para comer. Fez um lanche apenas e sentou-se ao sofá da sala. Havia um forte odor de álcool e cigarro. No televisor nada de interessante; somente novelas, programas de entrevistas banais e um canal fora do ar. Havia futebol. Não tomou gosto e desligou o aparelho. Voltou à cozinha, apanhou um copo, serviu uma dose de vodca e bebeu. Tornou a servir, e tornou a beber. Repetiu quatro vezes e enfadou-se. Nada lhe dava prazer, ou amenizava a angústia que trazia dentro do peito e o corroia como vermes em carne morta.

Sentou-se novamente no sofá, tomou uma revista que se encontrava sobre a mesa de centro, interessou-se por uma matéria e se pôs a ler:

- O Evangelho segundo Zé Diabo.

Adormeceu ali mesmo. Quando acordou Lucinda já havia preparado o café. Tinha no rosto lavado, nos cabelos presos, na camiseta branca sem roupa íntima, e na calça de pijama em seda, uma feição agradável, muito agradável e consideravelmente sensual. Anselmo pensou consigo: “poderia ser sempre assim, eu a amaria mais, muito mais...”.

Ela o chamou para o café. A mesa estava repleta. Lucinda o interpelou antes que sentasse, deu-lhe um beijo carinhoso e afagou seus cabelos com uma ternura que ele não conhecia. Beijou-o novamente, e com delicadeza encostou os seios em seu pescoço, fazendo-o arrepiar.

Fizeram o desjejum juntos, harmônica e amavelmente, como há anos não o faziam. O ar de serenidade mesclado a uma alegria desconfiada deixava Anselmo pensativo, porém não era empecilho para Lucinda, que cantarolava enquanto lavava a louça do café e já dava sinais de que o almoço seria especial.

Nesse ínterim, Marcos era apresentado aos colegas de internato, às normas da instituição e ao simpático diretor.

Dr. Nunes era uma figura agradável. Baixo, de cabelos brancos e finos, tinha os olhos verdes, de um verde tão intenso quanto a mata que circundava os muros da instituição. Havia vinte e três anos que ocupava o cargo de diretor, sendo oito anos também como professor de Filosofia.

Começara como diretor, por intermédio de um tio importante, um deputado com fortes influências. Após longos quinze anos ocupando a cadeira de diretor, pedira ao tio outra ocupação, encontrava-se já com sessenta anos, e a ociosidade já flertava com o diabo, não bastasse tal, o próprio ainda firmava que o ócio lhe causava náuseas e enfados diários, colaborando com a sonolência das segundas, quartas e sextas pela manhã, seus horários de folga semanais.

O dormitório, que ficaria Marcos, era chamado pelos internos de “corredor polonês”, que em tempos de discórdia era assolado por “ataques soviéticos”. Lá se amontoavam trinta leitos, divididos em duas fileiras.

O processo de ensino era um tanto diferente para os padrões da época. Todas as classes, desde a primeira do interno, o qual deveria contar dez anos, aprendia-se Língua Portuguesa, Matemática, Ciências e História. Nos anos que se seguiam, até ao aluno se formar, aos dezoito anos, eram acrescentadas outras disciplinas como Geografia, Filosofia, Psicologia, Ensino Religioso, Economia Política, entre outras...

Chegara o dia da primeira visita. Anselmo aguardava ansioso frente ao portão. Marcos o esperava. Trocaram um abraço fraterno.

Anselmo falava sobre a situação de casa, das bebedeiras da mãe de Marcos, do trabalho que ia bem...

O jovem contava das punições por ser um novato, de servir aos mais velhos e dos vexames que tinha de passar para ingressar no grupo das regalias, e dentre outras coisas não muito desagradáveis quanto...

Com o passar do tempo, Marcos continuava sendo servo dos demais, principalmente dos mais velhos.

Inocente. Frágil. Corpo franzino. Estatura baixa. Tudo colaborava para sua escravidão, mas ele se mantinha firme, contando os dias para sair.

Todos os dias de visita, Anselmo trazia algum dinheiro para alguma emergência que pudera ter Marcos. Ele não ia para casa nas visitas trimestrais. Contava-se quinze meses que o jovem não saía dos domínios da instituição.

Já se passavam vinte dias da data de aniversário de Marcos, quando uma correspondência chegou. Era uma breve carta, quase um bilhete, que dizia, entre outras...

“...mas o motivo desta estimado Marcos, é de lhe comunicar que seu pai falecera, vítima de um acidente de trabalho.

Sei que não tinhas contato com ele, mas afinal de contas era seu sangue, este mesmo que leva nas veias...

PS: Segue a explicação de um local onde podes devotar toda tua “fé”, e ter certeza de que milagres acontecem. É sua salvação ao sair daqui.

Carinhosamente, Anselmo”.

O rapaz ficou imóvel por pouco tempo, passou as mãos sobre os olhos levemente umedecidos, amassou o papel e jogou no lixo.

Depois da morte do pai de Marcos, Anselmo passou a não mais aparecer em todas as visitas. Mandava apenas cartas e algum dinheiro para o enteado. Algum bom dinheiro.

Marcos passou a se isolar cada vez mais, fazendo somente o necessário, encarcerando-se no quarto nos horários de lazer e nas folgas dos estudos, os quais lhe causavam um enorme aborrecimento, salvo as aulas do Dr. Neves, que eram o acalento para sua alma torturada e reclusa dentro de um universo que criara somente para si, e por si próprio.

- Bem... Boas tardes... Hoje trago outro pensador... Immanuel Kant vos fala...

...Abram seus livros no capítulo IV – Da origem do mal na natureza humana...

... Toda a acção má, se se buscar a sua origem racional, deve ser considerada como se o homem tivesse imediatamente incorrido nela a partir do estado de inocência. Com efeito, fosse qual fosse o seu comportamento anterior e quaisquer que tenham sido as causas naturais que nele tiveram influência, quer se encontrem dentro ou fora dele, a sua acção é, apesar de tudo, livre e não está determinada por nenhuma destas causas, portanto, pode e deve ser sempre julgada como um uso originário do seu arbítrio...”

Esses momentos eram mágicos para o jovem, contudo, ao bater do sino, a angústia predominava, e Marcos voltava novamente seus pensamentos e orações par’além dos muros que lhe subtraíam os sonhos e a possível felicidade.

Marcos completara dezessete anos. Aguardava, ansioso, uma visita de Anselmo. Sua mãe encontrava-se ao portão. O rapaz pressentiu o pior; e o pior ocorrera.

Anselmo falecera no hospital, vítima de um câncer que lhe consumia nos últimos dois anos, motivo de sua ausência nas visitas a Marcos.

Lucinda entregara a última correspondência. Nesta havia mais dinheiro, o número de uma conta no Banco da Cidade, e um documento deixando os bens de Anselmo para o filho que este nunca teve. Pela primeira vez Lucinda abraçara o filho como mãe e chorara com sentimentos nobres. Marcos retribuiu o abraço, tomou o envelope e desaparecera na negra imensidão do corredor.

Faltavam duas semanas para Marcos receber o diploma; porém, com a doença repentina do Dr. Neves, outro diretor tomou a frente da instituição, e este, infelizmente, não se parecia em nada com seu antecessor.

Vistorias surpresa eram feitas nos dormitórios e nos pertences dos internos. Nada lhe passava à vista, e tudo o que o tal diretor firmava ser ilegal, era confiscado e o interno sofria as duras penas da suposta transgressão.

Pornografias, cigarros, textos obscenos, incultos ou revolucionários... Dinheiro, principalmente dinheiro; tudo, absolutamente tudo, era confiscado.

Os internos ficavam desnudos, como os judeus nos campos de concentração. Marcos era um deles, e sempre estava dentre os “escolhidos”.

No dia da formatura Marcos subira ao palco para receber seu diploma. Na plateia sua mãe transbordava de orgulho. Os formandos arrumavam seus pertences no dia seguinte, para dar lugar a uma nova turma.

Na saída, antes de cruzar o portão principal, Marcos deixou as malas com a mãe e dirigiu-se a uma enorme mangueira. De espesso caule e quase centenária, a árvore servia de sombra ao velho carteiro, e de esconderijo aos garotos que fumavam. A mãe fitava o filho com ternura. Marcos pôs-se inerte frente à árvore, e de costas ao imponente muro que guardava a Instituição de Ensino e Socialização Pe. Antônio Vieira.

O garoto lançou olhar fixo em um ponto do céu, encontrou o Norte com o auxílio do sol e retirou do muro um tijolo. Introduziu sua pequena mão em um vão que se ampliava para a esquerda, após, à direita, e puxou um pacote envolto em plástico, protegido da umidade por um tecido espesso com motivos abstratos, ambos bem amarrados por um barbante.

Nesse pacote continha todo o dinheiro enviado por Anselmo, o número da conta no Banco da Cidade e o documento que dava a Marcos os bens do padrasto, ou melhor, do pai que nunca teve; tudo muito bem guardado e protegido no muro dos milagres...

Gimi Ramos
Enviado por Gimi Ramos em 29/12/2018
Código do texto: T6538145
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