Na lama
O céu estava carregado de nuvens, o temporal se avizinhava mas era preciso continuar a caminhada.
Ela estava acostumada àquele trecho da estrada. Era de terra batida, um descampado com algumas árvores bem típicas do cerrado. O Córrego das Onças passava mais abaixo e em época de chuvas fortes alagava aquelas terras até à margem da estrada, que ficava um charco só. Não se via ninguém. Aliás, se passasse um veículo era certo que iria para a fazenda do Coronel Antônio de Jesus, já que aquela via era tão somente para ligar o povoado às terras do prefeito. Mas naquele dia não havia visto nenhum empregado da Casa Grande pelas vendas do lugarejo. O jeito era continuar num ritmo mais rápido para evitar se molhar no aguaceiro. Faltando um quilômetro ou dois da porteira, ouviu um barulho de motor e foi aí que Iracema percebeu aproximar a caminhonete do secretário da prefeitura. Ele parou o carro levantando a poeira e sugeriu que a moça subisse com as encomendas que levava nas sacolas pesadas, cada uma num ombro. Como o temporal viria em seguida ela calculou que voltando para casa daquele ponto teria tempo de chegar seca. Agradeceu a carona para a encomenda da primeira dama, deu meia volta e se pôs no caminho ao seu humilde e doce lar. Mas o vento frio foi roçando-lhe a face e os pingos grossos iam esburacando o chão vermelho. Ela apressou-se mas nada a protegeria daquele temporal. Tentou correr, lembrou dos seis quilômetros que faltavam e viu as sandálias de borracha afundarem na terra lamacenta. Em poucos segundos a chuva forte caía na planície e formava piscinas de barro no caminho que ela já não evitava. Foi numa dessas que descalçou os chinelos e os levou às têmporas tentando proteger a visão. Os cabelos longos cederam do coque que havia feito pela manhã e cairam-lhe pesados sobre os ombros. A roupa colada limitava os movimentos mas ela ainda assim corria, corria... Chegou na Curva da Pedra onde a estrada seguia em declive e viu o quanto estava escorregadia. Procurou os cascalhos mais à beira da via, mas doíam-lhe as solas dos pés.
Riu-se da situação que se encontrava, mas a vontade era de chorar. As muitas lágrimas corriam pela face mas no íntimo ela gargalhava. Levantou os braços e girou, uma, duas, três vezes. Caiu se cobrindo de lama. Levantou-se trôpega e resolveu dançar no temporal. Que se dane os raios, não ficarei refugiada embaixo de árvore alguma! Também evitarei os mourões e assim eles não me atingirão... pensou na costumeira falta de sorte.
Ria alto e dançava um balé ridículo mas cheio de emoção. Lembrou das festas na escola. Não tinha sapatos como tinham as filhas do patrão de sua mãe. Dançava descalça, avexada, mas seguia com orgulho a orientação da irmã mais velha, quase professora na velha escola rural: - Vá lá, de pé no chão e dance como sabe fazer! Faça bonito porque é a melhor bailarina da região!
E assim ela ria, com o rosto encharcado de chuva e de lágrimas e dançava enlameada pela estrada que não a levava a nada... Nada mesmo.
Nesse instante sentiu a alma gelar. Como se estivesse entorpecida por álcool, parou subitamente na viela que levava à pracinha do lugar. Procurou a bica. A chuva abrandara e a lama era difícil de remover sem um bom banho de rio ou de chuveiro. Caminhou até o quartinho nos fundos da casa de D. Jesuína e deitou, ainda molhada, na esteira que lhe cabia.
Depois que os pais morreram, dois irmãos sumidos no mundo e sua querida irmã mais velha num convento, só lhe restou trabalhar na casa da confeiteira que lhe cedia, em pagamento, uma morada nos fundos do quintal e parca alimentação que fazia depois que batia o doce nos tachos e botava a massa para secar. Mais tarde, antes de se banhar, voltava para a lida pois precisava puxar e enrolar as balas que iria entregar no dia seguinte. Assim ela vivia na dor e na delícia de um destino que ela não encomendou.
Fechou os olhos e sentiu o abraço da lama viscosa. Adormeceu.
O céu estava carregado de nuvens, o temporal se avizinhava mas era preciso continuar a caminhada.
Ela estava acostumada àquele trecho da estrada. Era de terra batida, um descampado com algumas árvores bem típicas do cerrado. O Córrego das Onças passava mais abaixo e em época de chuvas fortes alagava aquelas terras até à margem da estrada, que ficava um charco só. Não se via ninguém. Aliás, se passasse um veículo era certo que iria para a fazenda do Coronel Antônio de Jesus, já que aquela via era tão somente para ligar o povoado às terras do prefeito. Mas naquele dia não havia visto nenhum empregado da Casa Grande pelas vendas do lugarejo. O jeito era continuar num ritmo mais rápido para evitar se molhar no aguaceiro. Faltando um quilômetro ou dois da porteira, ouviu um barulho de motor e foi aí que Iracema percebeu aproximar a caminhonete do secretário da prefeitura. Ele parou o carro levantando a poeira e sugeriu que a moça subisse com as encomendas que levava nas sacolas pesadas, cada uma num ombro. Como o temporal viria em seguida ela calculou que voltando para casa daquele ponto teria tempo de chegar seca. Agradeceu a carona para a encomenda da primeira dama, deu meia volta e se pôs no caminho ao seu humilde e doce lar. Mas o vento frio foi roçando-lhe a face e os pingos grossos iam esburacando o chão vermelho. Ela apressou-se mas nada a protegeria daquele temporal. Tentou correr, lembrou dos seis quilômetros que faltavam e viu as sandálias de borracha afundarem na terra lamacenta. Em poucos segundos a chuva forte caía na planície e formava piscinas de barro no caminho que ela já não evitava. Foi numa dessas que descalçou os chinelos e os levou às têmporas tentando proteger a visão. Os cabelos longos cederam do coque que havia feito pela manhã e cairam-lhe pesados sobre os ombros. A roupa colada limitava os movimentos mas ela ainda assim corria, corria... Chegou na Curva da Pedra onde a estrada seguia em declive e viu o quanto estava escorregadia. Procurou os cascalhos mais à beira da via, mas doíam-lhe as solas dos pés.
Riu-se da situação que se encontrava, mas a vontade era de chorar. As muitas lágrimas corriam pela face mas no íntimo ela gargalhava. Levantou os braços e girou, uma, duas, três vezes. Caiu se cobrindo de lama. Levantou-se trôpega e resolveu dançar no temporal. Que se dane os raios, não ficarei refugiada embaixo de árvore alguma! Também evitarei os mourões e assim eles não me atingirão... pensou na costumeira falta de sorte.
Ria alto e dançava um balé ridículo mas cheio de emoção. Lembrou das festas na escola. Não tinha sapatos como tinham as filhas do patrão de sua mãe. Dançava descalça, avexada, mas seguia com orgulho a orientação da irmã mais velha, quase professora na velha escola rural: - Vá lá, de pé no chão e dance como sabe fazer! Faça bonito porque é a melhor bailarina da região!
E assim ela ria, com o rosto encharcado de chuva e de lágrimas e dançava enlameada pela estrada que não a levava a nada... Nada mesmo.
Nesse instante sentiu a alma gelar. Como se estivesse entorpecida por álcool, parou subitamente na viela que levava à pracinha do lugar. Procurou a bica. A chuva abrandara e a lama era difícil de remover sem um bom banho de rio ou de chuveiro. Caminhou até o quartinho nos fundos da casa de D. Jesuína e deitou, ainda molhada, na esteira que lhe cabia.
Depois que os pais morreram, dois irmãos sumidos no mundo e sua querida irmã mais velha num convento, só lhe restou trabalhar na casa da confeiteira que lhe cedia, em pagamento, uma morada nos fundos do quintal e parca alimentação que fazia depois que batia o doce nos tachos e botava a massa para secar. Mais tarde, antes de se banhar, voltava para a lida pois precisava puxar e enrolar as balas que iria entregar no dia seguinte. Assim ela vivia na dor e na delícia de um destino que ela não encomendou.
Fechou os olhos e sentiu o abraço da lama viscosa. Adormeceu.