Lígia

Mais uma vez interrompera sua leitura. Aquela cena era algo tão inerente ao lugar, que até mesmo os jornais e revistas não mais se impressionavam. Sussurravam uns para os outros em tom sarcástico, exibindo seus conhecimentos e banalidades.

Ergueu suavemente a cabeça, observando com atenta serenidade toda a movimentação que o circundava. Abriu um leve sorriso e continuou. Novamente parou. Um caminhão que passava estridente buzinou, ao passo que, no lado oposto da rua, crianças trocavam figurinhas da copa do mundo de futebol.

Eduardo trabalhava em uma banca de jornal e revistas havia dois anos. Por ficar localizada às margens de uma movimentada rodovia, e uma enorme passarela, findar qualquer leitura era um exercício de paciência e prazer. Aquela pela necessidade de tempos e tempos de interrupção, a outra por conseguir dominar a primeira.

Aos vinte e dois anos, Eduardo era um jovem tranquilo. Morava com sua mãe e seu cachorro, Amália e Cronos, respectivamente. Aficionado em música tinha nela seu maior passatempo, seu prazer primeiro. Não era muito de sair à noite, como os rapazes de sua idade, e adorava ficar em casa, salvo os dias reservados à Juliana, a namorada.

Dois dias da semana, após fechar a banca, dirigia-se à casa dela. Juliana o esperava para o lanche, o qual precedia o jantar, sempre servido às oito e meia, costume religiosamente seguido por Dona Carla.

Após o lanche, sentavam-se em frente à casa, observando o movimento dos transeuntes. Eram trabalhadores que passavam após a jornada de trabalho, crianças que jogavam bola no campo de chão batido, tendo como incentivadores uma legião de cães de rua, que mesmo pelo tempo que passavam sem comer, a quantidade de feridas pelo corpo magro e debilitado, ladravam e saltitavam ao redor dos garotos e da amarelada bola de couro. Não obstante a tudo, senhoras trocavam considerações acerca do preço do gás, da situação da rua, da vida alheia, assunto este, o preferido de toda a vizinhança.

Quando o avermelhado do sol de fim de tarde ia mostrando toda sua beleza, e a noite ensaiava sua atuação, o casal entrava e sentava-se no sofá da sala de visitas para assistir televisão. Permaneciam ali até a hora do jantar, servido, religiosamente, às oito e meia.

A mãe de Juliana era uma viúva recente. Estivera casada com Antunes durante trinta anos. Tiveram apenas duas filhas, Juliana e Jaqueline, que falecera aos cinco anos de idade, vítima de meningite.

Após a morte do marido, Dona Carla, sentindo-se muito desamparada, apegou-se a uma religião, Igreja..., e desde então pregava em nome de Deus, os bons costumes e a necessidade de se ter fé.

Era uma senhora de belos traços, de estatura mediana, longos e negros cabelos, muito lisos e pesados, presos, quase sempre, por uma volumosa trança. Não se abstinha de saias longas e camisas de fino corte, ambas em tons suaves e discretos, que condiziam com sua postura centrada e autoritária, e em momentos alguns, sutilmente arrogante.

Há dois anos e meio, Eduardo suportava os sermões e conselhos de Dona Carla. Não havia um só jantar, uma única vez em que ele lá estivesse, que a devotada senhora não lhe trazia a palavra de Deus aos ouvidos.

Sempre com fundo “moral”, os sermões iniciavam desse modo...

- O homem que segue a Deus... é um homem puro e que não sofre... e nesse mundo de perdições, a fé e o trabalho andam juntas...

A fé traz a paz, e um trabalho que tenha boa remuneração faz o homem respeitável, pois só assim sustentará a família com dignidade...

E não sei se já lhe falei... Apontando o indicador fino e de unhas pintadas de um rosa tão claro quanto à pele de um bebê... – sobre o Salmo primeiro... E claro que já havia falado um milhão de vezes – que diz:

- Bem-aventurado o homem que não anda segundo o conselho dos ímpios, nem se detém no caminho dos pecadores, nem se assenta na roda dos escarnecedores; antes tem seu prazer na lei do Senhor, e na sua lei medita de dia e noite. Pois será como a árvore plantada junto às correntes de águas, a qual dá o seu fruto na estação própria, e cuja folha não cai; e tudo quanto fizer prosperará. Não são assim os ímpios, mas são semelhantes à moinha que o vento espalha. Pelo que os ímpios não subsistirão no juízo, nem os pecadores na congregação dos justos; porque o Senhor conhece o caminho dos justos, mas o caminho dos ímpios conduz à ruína.

A cena era cômica. Enquanto Dona Carla pregava com fervor, de olhos vezes fechados vezes entreabertos, Eduardo acompanhava em voz baixa e com caras muitas todo o proferir da devota, fazendo com que Juliana se divertisse com o momento.

Desse modo seguia até findar o jantar, porém cada dia tinha sua particularidade. Ora a temática era um bom emprego e a fé, ora a fé e uma sustentável remuneração. Toda aquela disposição retórica e moralista de Dona Carla, trazia a Eduardo certo constrangimento repulsivo, uma mistura de vergonha e revolta, incapacidade e indignação. Sabia ele que seu trabalho como jornaleiro, como não deixava de “alfinetar” Dona Carla, não era o ideal para alguém que almejasse um futuro, mas como ele pensava, após ter lido em um livro, que não existe ontem nem amanhã, e que as lembranças do passado, as preocupações com o futuro só causam inquietação. O jovem acreditava também que o caminho para a serenidade está em prestar atenção no presente, e não despender muito tempo com o que pode vir.

Teoricamente, configura-se em um belo pensamento, porém é passível de se pensar em tal.

Eduardo não mais ouvia as replicações de Dona Carla, enquanto Juliana, que já decorara o discurso, apenas balançava a cabeça sinalizando a concordância.

Na hora de dormir, Eduardo acomodava-se no sofá da sala, em que momentos antes, o casal assistira televisão, vigiados, de perto, pela atenta senhora.

Ao amanhecer, Eduardo seguia para o trabalho, e nem sequer despedia-se da namorada, quando muito bebia uma xícara de café oferecida por Dona Carla, acompanhada de uma fatia de conselho, coberta com creme de recriminação.

O movimento na banca sempre era intenso.

Por ali apareciam os mais variados tipos. Dos executivos às madames, do religioso ao libidinoso. Eduardo era amigo de todos, e dos clientes mais frequentes, sabia dos gostos, das repulsas, das tristezas, das alegrias. Para muitos clientes a visita à banca era algo próximo a um confessionário, uma deitada no divã da amizade e do ouvido a tudo. Eduardo, apesar da idade, aconselhava, desaconselhava, repreendia e congratulava atos e des-atos de seus clientes mais assíduos.

Eram cinco e meia quando Eduardo fechou a banca.

O céu, um tanto cinza, dava sinais de uma noite de chuva. Em tom despreocupado, ateve-se um tempo à margem da rodovia, observando, indiferente, o ciclo que se formava a sua frente. Pesados caminhões passavam rapidamente, automóveis e pessoas se confundiam naquele caos ordenado, de falas e buzinas, de motores e pensamentos. O jovem olhava tudo sem se preocupar, enquanto gotas acanhadas beijavam o chão, trazendo àquele fim de tarde a atmosfera melancólica de julho.

Do trabalho até sua casa não gastava mais que dez minutos. Tomava sempre o caminho mais longo, às margens do rio que cortava a cidade. Por aquele trajeto, nos fins de tarde, especialmente naquela época do ano, um aglomerado de homens ocupava grande parte da margem. Vinham de todas as localidades, traziam seus lanches, alguma bebida para aquecer quando o sol abandonava o horizonte, suas varas de pescar, muita isca e muita história. A paisagem era pitoresca, e difícil fazia-se passar por ali e não abrir um sorriso, parar um instante e sentir toda a vibração de paz que de lá emanava.

Naquele dia ele não se conteve; despendeu um tempo a ouvir um dos pescadores, Seu Jacó.

Aposentado havia 25 anos, professor de História, Jacob Hunstweiss, era um homem de corpo avantajado, sobrancelhas bem marcadas, olhos de um azul vivo, cabelos quase brancos totalmente, e de uma simpatia de dar inveja a qualquer um. Seu Jacó adorava contar histórias. Bem, de tal modo não eram histórias, era História propriamente dita. Tinha muitas aulas arquivadas e prontas para trazer à tona. Arquivadas na mente lúcida e dotada de pormenores. Às vezes falava da queda do Império Otomano, outras vezes trazia toda a Guerra dos Cem Anos, em momentos outros explanava acerca da Queda da Bastilha, e por aí se perdia em palavras e sentimentos saudosistas. Porém, adorava contar sobre ele próprio e seus causos fantásticos...

Eduardo sentou-se, acomodou-se e abriu bem os ouvidos, ao passo que o maestro das palavras assim proferiu:

- Era verão, eu tinha uns dezesseis para dezessete anos de idade quando ouvi pela primeira vez a voz mais doce do mundo, “para lhe falar a verdade, a única voz doce deste mundo”, sim... Verdade!

Morávamos no estado vizinho. Eu, mamãe e minha irmã. Papai já havia falecido. Eu adorava passear próximo do açude, que ficava pouco depois do monte onde havia uma imensa mansão abandonada, bem em frente a uma padaria, a qual comprava o lanche antes de ir ao colégio. Na mansão, somente os mais velhos entravam lá, casais de namorados e coisas do tipo. Naquela época só se namorava depois dos dezoito anos de idade, e com o consentimento dos pais.

Mussolini era meu fiel companheiro, separava-se dele apenas na hora de dormir e acredito que fosse o verdadeiro amigo que eu possuía.

Chovia muito, comum nos fins de tarde daquele verão. Mussolini e eu, como de costume estávamos a caminho do açude quando uma voz me chamou a atenção. Sim, era a voz que até hoje me dá um frio na barriga ao recordar o momento.

Parei e direcionei os olhos. Observei, de cima a baixo, a imagem que seria a razão de minha existência...

Disse o senhor com lágrimas nos olhos.

Seu Jacó fechou os olhos e novamente respirou fundo.

- Assim como esta pausa, fora também naquele breve instante em que mudo e imóvel eu fiquei admirando então a criatura de maior beleza a qual já vi.

Os olhos e os cabelos eram negros como a noite, a pele tinha um brilho que hipnotizava e os lábios eram perfeitamente delineados e de tom sedutor, palavra que eu aprendi anos após o fato, pois naquele momento não encontrei uma exata definição. Mas me ocorreu ser uma Vênus em forma de menina-mulher. Entendi então a existência de Deus, mas também acreditei no que me contavam sobre o mistério da mansão.

Não sabia o que era sentir medo, meu coração parecia não mais existir no peito, um vazio enorme era o que se apresentava naquele momento.

Eu não estava ainda refeito daquele espasmo, minhas pernas não me obedeciam quando ela se aproximou e pediu ajuda reclamando de sofrimento e abandono, com uma voz que parecia sair de um coro de anjos.

Não entendi prontamente o pedido da jovem, mas mesmo assim ela me agradeceu, não tendo eu dito uma só palavra. Parecia ter lido minh’alma. Todas as noites eu rezava e todos os dias a visitava. Foi deste modo todo o verão de 1943, um ano de guerra...

Março estava no seu meio quando a garota, Mussolini e eu jogávamos conversa fora, aliás, ela e eu. Mussolini somente parecia falar de tanta inteligência. Foi de surpresa que uma luz azulada nos cegou por alguns segundos e, finalmente aconteceu o que eu temia. A garota, envolvida por um brilho maior que o da sua pele, sorrindo me beijou, agradeceu pelas orações e pela companhia. Após um breve estrondo desapareceu como surgiu, linda e sublime igual ao eterno amor que eu senti por quem não tenho certeza se era sonho ou realidade.

A luz continuou piscando até aproximar-se do centro da lagoa. “Mussolini rosnava e latia, firmava-se nas patas como um touro bravo defendendo seu território...”

Eduardo encontrava-se tonto de tanta informação. Pensava consigo, como se armazenava no cérebro de um homem com idade tão avançada, tudo o que Seu Jacó falara. Sem titubear, sem coçar a cabeça buscando lembrar-se de uma falta, não suprimir, nem ao menos sentir a boca secar com tudo que fora contado.

Agradeceu a história, apertou ternamente a mão de Seu Jacó, bateu a poeira das calças e tomou seu caminho.

Abriu o portão de casa, retirou do bolso a chave, e entrou. Parou um momento pensando no que se passara. Sorriu, chamou pela mãe e não obteve resposta. Foi ao banho. Como de costume, esquecera-se das roupas e da toalha. Voltou ao quarto despido. Apanhou tudo e concretizou seu intento.

Ele tinha um ritual preparado após tomar banho.

Primeiramente dirigia-se ao seu quarto, tomava o preferido vinil, colocava-o a tocar, ia à cozinha fazer um lanche e logo em seguida deitava-se na cama.

Por ali, imóvel e sonolento, permanecia até as nove da noite, quando sua mãe o chamava para jantar.

Jantou e foi dormir.

Chovia fino. A temperatura era amena e não necessitou de muito agasalho para mais um dia de trabalho.

Eduardo abrira a banca de jornal por volta das oito e meia. Levantou a porta de enrolar, abriu as grades e fez sinal ao colega da lanchonete que ficava no lado oposto da rua. Márcio demorou cinco minutos para trazer o café com leite e o pastel, ambos quentes e recém-nascidos. Era outro ritual do jovem rapaz, o qual repassava ao colega vizinho de trabalho.

Logo cedo muitos clientes assíduos passavam com rapidez para pegarem seus jornais diários e seguirem para suas jornadas finais da semana.

Dr. Pavini, o dentista, sempre às sextas-feiras levava consigo sete exemplares dos principais jornais da região e do estado. Era um senhor de setenta e cinco anos, ativo, sempre de bom humor. Tinha os cabelos ainda naturais, porém com uma leve ausência na parte superior. Olhos azuis, vívidos e alegres, nariz de fino trato e um sorriso contagiante. Nas sextas, somente nas sextas, tinha uma anedota para contar.

Arnaldo José, o advogado, era outro cliente frequente de Eduardo. Era um homem sisudo, de feições sérias e marmóreas. Alto, aproximadamente quarenta e sete anos de idade, era o único que permanecia no local a examinar as novidades em livros que chegavam.

Seu Francisco, ou tio Chico, não era o que se poderia dizer de cliente frequente, mas era assíduo frequentador. Passava somente para conversar, contar as “boas novas” da redondeza e folhear sem compromisso e com a boca entreaberta as revistas masculinas. Adorava as do “coelhinho”, como designava o próprio tio Chico com um riso maroto no rosto, e as sobrancelhas que subiam e desciam, dando ao velho senhor um ar moleque.

Havia outros tantos que preenchiam o horário de Eduardo das nove até ás onze e trinta nos dias mais movimentados.

Porém, naquele dia, em especial, algo parecia diferente. Seu Francisco já havia contado as novidades; o advogado buscava, a miúde, alguns livros para o fim de semana; e enquanto o Dr. Pavini contava a anedota do dia, uma moça adentrou à banca...

- A garota chega para mãe, reclamando do ceticismo do namorado...

A jovem tinha os cabelos negros e lisos, muito compridos, um rosto alvo e brilhante, tal qual a Virgem Maria. Alta, de estatura em torno de um metro e oitenta, uma silhueta provocante, talvez por conta da calça e sapatos negros e uma blusa justa ao corpo, que lhe marcavam a cintura fina, os flancos perfeitos, e os seios magistralmente desenhados e convidativos, bem como os lábios perfeitamente delineados e de tom sedutor.

Passeava pelo local à procura de algo. Eduardo a acompanhava com os olhos e outros sentidos, enquanto isso, Dr. Pavini concluía a anedota reservada para a semana e se despedia...

- Mãe, o Pedro é um incrédulo. Diz que não acredita em inferno!

A mãe responde: Case-se com ele minha filha e deixe o resto comigo! Até mais ver caro Eduardo.

O doutor saiu rindo. Eduardo nem sequer lhe retribuiu a despedida. Estava paralisado. Por um momento lembrara-se de Seu Jacó. Outros clientes chegaram, ele atendia, mas não dava atenção. A misteriosa moça continuava a passear pelo interior da banca.

O advogado separara os itens de sua compra; Seu Francisco, sem pudor algum, folheava com os olhos brilhantes as revistas do “coelhinho”. Nesse momento a jovem se aproximou do balcão. Eduardo separava os jornais dos clientes frequentes que ainda não haviam passado para buscá-los.

De súbito, a Vênus em forma de cliente, ou a cliente em forma de Vênus questionou, após um bom dia, suave e hipnotizante quanto o mais belo canto dos anjos.

- Olá moço, teria por acaso cromos do álbum da copa?

Eduardo titubeou. Gaguejou. Titubeou novamente e respondeu um “sim” como se estivesse diante do padre, na igreja, frente ao momento sublime da união de duas almas.

- São para meu sobrinho, seu álbum está quase completo, e lhe faltam somente alguns exemplares, e pensei, que comprando fora da cidade onde ele mora, eu teria mais sorte. Faltam-lhe...

O rapaz estava tão absorto naquele transe que custara a encontrar os envelopes.

Na parte posterior da banca, Arnaldo José e Seu Francisco entreolharam-se, fizeram sinal de questionamento via gestos e feições faciais, mas mantiveram seus intentos.

Eduardo continuava a busca dos envelopes, a moça aguardava analisando algumas capas de revistas de moda que se acomodavam ao lado do balcão.

O advogado aproximou-se, chamou Eduardo, que se encontrava abaixado procurando os cromos da copa.

- Eduardo?

Questionou novamente o doutor. O rapaz ergueu-se rapidamente e lançou o olhar para a Vênus-cliente, e logo ao advogado, que franziu a testa e questionou...

- Este volume está lacrado, posso abri-lo para analisar o conteúdo, visto que a sinopse não me disse muito acerca da obra...

Eduardo concordou com a cabeça e manteve sua incessante busca aos cromos da Copa do Mundo de Futebol. Porém, antes, confirmou com a cliente que logo encontraria. Arnaldo José abria o volume de Alan Kardec, O evangelho segundo o Espiritismo, e em voz baixa lia o prefácio, observando “vez em quando” a atitude de seu jornaleiro...

- Os Espíritos do Senhor, que são as virtudes dos céus, como um imenso exército que se movimenta, ao receber a ordem de comando, espalham-se sobre toda a face da Terra. Semelhantes a estrelas cadentes, vêm iluminar o caminho e abrir os olhos aos cegos.

Eu vos digo, em verdade, que são chegados os tempos em que todas as coisas devem ser restabelecidas no seu verdadeiro sentido, para dissipar as trevas, confundir os orgulhosos e glorificar os justos.

As grandes vozes do céu ressoam como o toque da trombeta, e os coros dos anjos se reúnem. Homens, nós vos convidamos ao divino concerto: que vossas mãos tomem a lira, que vossas vozes se unam, e, num hino sagrado, se estendam e vibrem, de um extremo do Universo ao outro.

Homens, irmãos amados, estamos juntos de vós. Amai-vos também uns aos outros, e dizei, do fundo de vosso coração, fazendo a vontade do Pai que está no Céu: “Senhor! Senhor!” e podereis entrar no Reino dos Céus.

Eduardo apareceu de sobressalto, assustando o advogado, compenetrado em sua leitura; Seu Francisco em seu ritual de apreciação estética da beleza feminina via fotografias; e os demais clientes que buscavam palavras-cruzadas e outros exemplares de entretenimento.

- Achei! Estão aqui...

Todos fingiram não ver. Eduardo apresentou a caixa que continha os envelopes de cromos e os álbuns. A moça sorriu, voltou-se ao balcão e concluiu...

- Que bom, queria saber se encontraria. Saí sem minha bolsa. À tarde passo por aqui e levo alguns ao meu sobrinho. Grata pela atenção!

Eduardo balançava a cabeça e sorria com um punhado de envelopes na mão.

O relógio marcava dez horas.

Seu Francisco já havia desaparecido.

O advogado compara três obras: “A miséria da Filosofia”, de Karl Marx; “O Evangelho segundo o Espiritismo”, de Kardec; e “O príncipe”, de Maquiavel.

Este agradeceu com um tom de voz um tanto estranho, porém com a mesma polidez.

Meio-dia. Eduardo fora almoçar na casa da namorada. Ao chegar, encontrou Juliana sorridente. A futura sogra do mesmo modo. Eduardo tinha uma ansiedade que curaria somente com o passar das horas.

A namorada notou algo estranho e perguntou:

- O que houve Eduardo?! Estás tão estranho, quieto e pensativo...

Algo aconteceu... Mal me beijou... Não disse uma palavra desde que chegara...

O namorado não respondeu. Seu cérebro não processara todas as afirmações de Juliana. Ela voltou a questionar:

- O que houve, fiz algo que não tenhas gostado?!

Num ímpeto de necessidade, respondeu com rispidez...

- É o cansaço, o trabalho anda estressante...

Dona Carla chamara para o almoço. Sentaram-se. Oraram.

Eduardo agradeceu a refeição, beijou a namorada na testa e disse que abriria mais cedo a banca. Mãe e filha ficaram sem palavras frente à atitude do rapaz. Jamais havia feito tal desde o início do namoro.

No caminho até ao trabalho ia pensando e vislumbrando a imagem da cliente misteriosa. Questionava em seu âmago de onde viera; o que fazia; qual o motivo de tê-lo transtornado tanto, já que amava a namorada? Porque seu sonho de uma vida casado com Juliana ia sumindo como a azul fumaça de incenso à mercê de uma leve brisa?

Interrompeu seus pensamentos ao chegar à banca. A Vênus estava lá, de pé, frente à porta, aguardando que Eduardo abrisse. Ela sorriu. Ele não sabia o que fazer, mas retribuiu o sorriso. Abriu a banca, ofereceu a entrada à cliente e logo a seguiu. Fitou-a por completo. Era deslumbrante, exalava um perfume inebriante, quase hipnótico.

Colocou-se detrás do balcão, enquanto ela passeava pela banca, como um desfile, dando a impressão de não tocar os pés no chão, levitando. Seus cabelos negros brilhavam, pesados e densos como uma nuvem carregada, prestes a suprir a terra com toda a fertilidade e vida que só o amor provém.

As luzes ainda não haviam sido acesas quando uma senhora adentrou de súbito. Eduardo a atendeu com os olhos fitados na cliente sem nome. A mulher perguntou sobre revistas de tricô e crochê, Eduardo indicou a direção, bem em frente a sua adorável perturbação. A senhora passou indiferente ao lado da moça e iniciou sua busca.

Eduardo avisou sobre os cromos, a mulher que, compenetrada em suas escolhas, nada entendeu perguntando.

- O que foi? Falou comigo?

Eduardo disse que não, que fora com a moça. A senhora sorriu e manteve sua procura. A moça chegou até ao balcão e dessa vez apresentou-se.

- Boa tarde, sou Lígia, venho do estado vizinho...

Eduardo disse seu nome, e que era um prazer conhecê-la.

A senhora das revistas de tricô e crochê voltou-se para trás e sorriu. A moça com simpatia retribuiu.

Lígia pediu vinte e cinco envelopes de cromos. Eduardo assustou-se. Ela, com um riso puro e angelical, questionou o preço. O jornaleiro, hipnotizado pela bela moça, disse que era cortesia da casa; ela insistiu em pagar, mas ele fez questão e não a deixou tocar a bolsa. Ela agradeceu, disse que queria pagar, mas se era da vontade de Eduardo tudo bem, não ia fazer uma desfeita a tão simpático moço. Eduardo sentiu-se lisonjeado, e naquele momento, imaginou-se o único homem do mundo.

Conversaram um bom tempo. Foram interrompidos pela mulher das revistas. Eduardo pediu licença à Lígia, e cobrou os dois exemplares do “Novíssimo Curso Intensivo de Tricô e Crochê”. A mulher se fora, com um riso entre os dentes e a cabeça balançando. Eduardo olhou ternamente para Lígia e fez um sinal de “maluquice”, apontando para a senhora com a cabeça e girando o indicador em torno da orelha direita. Lígia sorriu, concordando com os olhos.

Marcaram de se encontrar em algum lugar à noite. Lígia iria embora logo cedo, ao amanhecer. Acertaram que seria em um bar no centro da cidade, bem reservado, com certo requinte e nuances de romantismo.

Contaram-se sete horas quando Eduardo chegou ao local do encontro. Lígia ainda não havia chegado.

O relógio do lugar chamava a atenção. Entalhado em canela preta, com forma heráldica, tinha dois leões guardando o círculo que abrigava o marcador. Logo abaixo, uma flâmula com feições de estandarte trazia gravado o nome do estabelecimento. Marcava sete e trinta quando Lígia entrou.

Eduardo sorriu.

Lígia acenou fazendo sinal que iria ao banheiro. Fora retocar a maquiagem, pensou Eduardo.

Ela retornou, sentou-se e cumprimentaram-se em tom amigável, sem toques, no momento exato em que o garçom chegara. Eduardo olhou para o jovem e logo se voltou para Lígia questionando o que beberiam.

- Vinho, cerveja...

Ela deixara por conta de Eduardo a escolha. O garçom aguardava com ar admirado. Talvez não entendesse o motivo de tal acontecer. Eduardo pediu vinho e duas taças, fazendo sinal positivo com um sorriso franco para Lígia. O garçom anotou o pedido com feição falsa de simpatia, e com um leve riso amarelado e débil. Saiu balançando a cabeça.

Eduardo falava que queria ser professor de História, e trabalhava na banca para guardar dinheiro para os meses iniciais do curso e sua estadia, ajudando a mãe, viúva, nos tempos em que se ausentasse.

Lígia iniciara sua história quando o garçom apareceu novamente. Dessa vez trazia o vinho e as duas taças. O atendente iniciara o processo de servir, porém Eduardo o interrompeu.

- Deixa que sirvo... Grato.

O jovem consentiu com face transtornada. Deixou a garrafa e as taças em frente a Eduardo e deu as costas murmurando algo. O rapaz serviu o vinho. Entregou uma taça à Lígia e logo brindou o momento. Lígia retribuiu, porém não bebera. Eduardo estranhou, mas pensou ser normal, a moça era um tanto polida e requintada, talvez bebesse depois que a conversa tomasse um norte e ela se soltasse mais.

Os minutos ajudam as coisas a tomarem seu lugar. Lígia levou a taça até aos suaves lábios; tinha os olhos voltados para Eduardo, como quem pede ajuda, como quem sofre, e desse modo, irradiavam um brilho singular, quase sôfrego.

Contava sobre sua vida.

- Então queres ser professor? O rapaz consentiu com um sorriso aliviado, e Lígia continuou...

- Sou da capital do estado vizinho. Percorro várias cidades do Sul, e sempre passo por aqui. Tenho conhecidos em sua cidade, mas ainda não havia passado onde você trabalha. Confesso ter-lhe achado interessante, e há algo em você que me atrai.

Eduardo, que somente tinha duas mulheres na cabeça, contava agora com três: sua mãe, Juliana e Lígia.

- Esse algo me fez voltar à tarde... E claro, os cromos para meu sobrinho, que na verdade são para mim...

Os dois riram. Riram como se conhecessem há séculos. Enquanto os outros clientes riam também de tanto entusiasmo.

A noite fora maravilhosa. Eduardo acompanhou Lígia até ao hotel onde estava hospedada, que por coincidência, ficava ao lado da casa de Seu Jacó.

O rapaz anotou o endereço para que pudessem trocar correspondências nos tempos em que Lígia não estivesse na região. Ela concedeu.

Trocaram boas noites e ela lhe mandou um beijo, o qual ele sentiu como se tivesse os lábios dela molhando os seus.

Chegou a casa. Fez um lanche, e a chama da culpa lhe queimou. Seu coração dilacerou, triturou-se ao pensar em Juliana. Mas sua mente, ditadora pérfida e intolerável gravara em suas entranhas o nome Lígia, e com ele um sentimento que Eduardo não acreditava piamente que existia.

Forte. Avassalador. Intransponível.

Sábado e domingo se passaram e Eduardo não fora à casa da namorada.

Juliana não saía da janela, enquanto sua mãe regozijava de júbilo intenso e abençoado aquele distanciamento repentino. Pensava consigo que suas orações surtiram efeito.

Segunda pela manhã, antes de ir ao colégio, Juliana aguardava Eduardo em frente à banca. Isso lhe custaria caro, talvez uma suspensão, pois a primeira aula dava-se com o Prof. Wilton, de Matemática. Era um verdadeiro carrasco, de barba cerrada, olhos rasos, nariz fino e pequeno, e uma calvície bem avançada.

Mas a suspensão, advertência, expulsão era o que menos importava naquele dia. Não se importava nem com a mãe e sua repreensão. Juliana queria saber o motivo pelo qual Eduardo não aparecera no final de semana.

Ele chegara por volta das oito e quarenta. Juliana estava plantada a sua espera. Eduardo assustou-se, pois trazia na mão uma carta para Lígia. Quando avistou a namorada fez questão de esconder, mas era tarde demais. Juliana já havia percebido que Eduardo trazia algo na mão, e pela feição e formato do papel, branco com bordas em verde e amarelo, tratava-se de um envelope de carta.

Eduardo nem abriu a banca, e a metralhadora de perguntas iniciou:

- Por que não apareceu no final de semana? Por que estava tão calado? Você tem outra? Para quem é esta carta?

E assim continuara...

Dentre tantos questionamentos, somente uma afirmação.

- Acabou! Não me procure mais.

Para Eduardo fora um alívio mesclado a algo inexplicável, pois ainda amava Juliana; em contrapartida, havia se encantando por Lígia, porém, no fundo se sua alma, a Vênus o amaldiçoara.

Com o coração e a mente negros como o pecado foi ao correio e postou a carta para a “amiga” Lígia.

Os dias correram e a resposta de sua carta não chegara. Sentia falta de Juliana, cogitara até uma reaproximação, mas tinha uma imensurável vontade de rever a “amiga”.

Após treze dias do envio da carta, Lígia apareceu. Eduardo ficara radiante, sabia, tinha absoluta certeza de que amava a sua Vênus. Ele fechou a banca e foram ao jardim central da cidade. Conversaram por aproximadamente três horas. Ele falou tudo o que sentia e o que fizera. Lígia prestava atenção sublime a tudo aquilo com uma aura brilhante que envolvia seu corpo e fazia que a leve brisa tocasse cada alma que ali passava.

Chegara a hora de se despedir. Lígia beijou-o e disse até logo, pois breve iriam se encontrar. Ela tinha realmente de ir, mas o amor que ele sentia por ela, e o que ela sentia por ele, seria eterno.

Ela partiu. Eduardo manteve-se sentado no banco do jardim até o horário de abrir a banca. Sentia-se aliviado, com o peito aberto e fresco tal qual uma alvorada. Límpido e livre de toda a amargura que passara durante os treze dias da postagem da carta até a aparição de Lígia e a confirmação do amor eterno.

O fim da semana se aproximava, e com ele todo o movimento habitual. Dr. Pavini apareceu cedo, estranhou a alegria de Eduardo e disse que havia trazido uma ótima anedota para o dia. Tomou seus exemplares e desatou a última...

- O caipira vai com a família passar uns dias na cidade. Ao chegar a um hotel, parou estupefato em frente ao elevador tentando entender para que servia uma porta com tanta luzinha piscando.

De repente, uma senhora bem velhinha entra no elevador, a porta se fecha e ela desaparece. Pouco depois a porta se abre novamente e o caipira dá de cara com uma garota gostosíssima.

Entusiasmado, ele grita para o filho:

Josias vá correndo chamar a sua mãe!

Eduardo riu. Dr. Pavini riu. Os dois riram novamente e o doutor despediu-se com alegria de ver o amigo melhor.

Seu Francisco, com um resfriado passara mais cedo que o de costume. Contara somente as novidades, não estava apto para as do “coelhinho” naquela sexta, o ar lhe faltava deveras.

Arnaldo José, o advogado, levara somente o segundo volume de “A República” de Platão, recém-chegado. Naquele dia fez algo fora do normal: elogiara o semblante amável de Eduardo, pois há tempos andava preocupado com ele. Eduardo agradeceu. Deu o troco ao doutor e fechou a banca por algum tempo, com a famosa placa “VOLTO JÁ” pendurada à porta, e fora ao correio.

Vinte dias se foram e nenhuma resposta de Lígia. Enviara outra, e logo mais uma e mais outra.

Dois meses e nenhum sinal de Lígia.

Comprou uma passagem e resolveu fazer uma surpresa, pois, com certeza, a amada Vênus, estava com muitos compromissos e não tivera tempo de remeter a resposta, ou, quem sabe conseguira averiguar as correspondências.

Tomara o primeiro ônibus no sábado pela manhã. Chegou ao destino antes do meio-dia. Como não conhecia a cidade, tomou um táxi, pedindo que o levasse ao endereço das correspondências.

Chegaram à Rua Lima Barreto, oitenta e cinco, Nova Alvorada, antes da uma hora da tarde.

Uma árvore no outono apresentava mais vida e alegria que os olhos de Eduardo naquele momento. No citado endereço, apenas um casarão inóspito. Portas e janelas, e escadas, e sacadas, e tudo mais em deterioração. Um jazigo abandonado, porém, em maiores proporções e entregue aos castigos do tempo e dos depredadores.

Ele desceu do táxi. Questionou ao motorista se era ali mesmo o local das correspondências; o homem confirmou com a cabeça, olhando pelo retrovisor.

Eduardo aproximou-se do portão, corroído pelos anos, e que por conta do destino, suportava uma caixa de correios enferrujada, repleta de cartas úmidas, e deteriorada pelas chuvas e tempestades. Encontrou, fadadamente, resquícios de todas as suas correspondências.

Chorou como um homem. Soluçava como um menino.

Foi até ao táxi e pediu que o motorista aguardasse um momento. Dirigiu-se então a uma mercearia que ficava em frente. Questionou a respeito dos moradores. A atendente, muito simpática disse que havia tempo que tinham se mudado, ela nem era nascida na época, sabia através dos moradores mais antigos.

A moça saíra detrás do balcão e apontou uma casa simples, um pouco mais acima. Lá residia uma das antigas proprietárias da mansão. Eduardo agradeceu com fervor a simpática moça e logo dispensou o táxi.

Subiu a ladeira que levava à casa indicada pela moça da mercearia. Em frente à residência bateu palmas. Uma senhora de cabelos brancos, corpo franzino, olhos negros e sofridos apareceu à janela. Eduardo indagou por Lígia. A senhora fez sinal que entrasse. Ele abriu o portão de madeira, com pintura descascada e apodrecida. Subiu alguns degraus que davam acesso à porta, em que já lhe esperava a senhora.

Ela fez sinal para que Eduardo entrasse e tomasse um lugar no velho estofado, com feições finas, mas já desgastado e corroído. A senhora lhe deu as costas, porém logo retornou.

- Veio saber sobre Lígia meu rapaz...

Indagou afirmando a senhora com um tom amargo e saudosista na voz rouca e fraca. Eduardo afirmou indagando com os olhos inundados e inexpressivos.

- Então...

Uma longa pausa fez a senhora chorar.

Eduardo tentou confortá-la.

- Então meu rapaz... ela está aqui no quarto...

A senhora falou entre os dentes e com reticências... Eduardo alegrou-se entre parênteses.

- Venha comigo, vou lhe mostrar. Veja! Ali, sobre a penteadeira... é tudo o que Lígia nos deixou... E é tudo que temos para tê-la conosco...

Verdadeiramente era ela.

A mesma roupa, os mesmos cabelos, os mesmos olhos, e o mesmo sorriso. Porém, com uma ressalva. Era apenas uma envelhecida fotografia...

Gimi Ramos
Enviado por Gimi Ramos em 28/12/2018
Código do texto: T6537752
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