Barão

Há certas histórias que nos causam pavor, outras, alívio ao seu findar e muitas outras que mesclam pavor, serenidade e reflexão.

O que discorrerei nas próximas linhas foi me apresentado na mesa de um bar, mas peço de antemão ao leitor que dê crédito ao que aqui for posto, pois o álcool não mais fazia parte da vida do personagem que lhes apresentarei, e somente eu e minha esposa apreciávamos uma cerveja gelada naquele fevereiro escaldante de país tropical.

O ser humano em todo o seu trajeto está à mercê de intempéries várias que o acometem aos mais distintos caminhos, fazendo-o trilhar por percursos que nem sempre benéficos são, ao contrário, trazem um inferno em vida, o sofrimento que o pecador pagará no juízo final, se é que este mesmo exista.

A ausência da razão, a insanidade, a demência, entre outros percalços, são, à primeira vista, os caminhos mais tortuosos de uma existência, pois de nada somos sem nosso discernimento de certo e errado, de bom e ruim, de quente e frio, de belo e feio, de vida e morte.

A demência, que em termos técnicos configura-se como deterioração progressiva das faculdades mentais, acomete o indivíduo a um desenvolvimento psíquico normal até certa idade quando, então, inicia a apresentação visível da decadência de suas faculdades mentais, começando pela memória. Na demência podem ser conservados alguns resquícios da inteligência, da moral, certa dignidade e algumas outras expressões de caráter. Entretanto, em outros casos a demência provoca total desintegração da personalidade, não permitindo ao doente nenhuma condição de vida social, nem mesmo possibilidades para cuidar de si próprio.

Deve estar agora se perguntando o leitor qual o motivo da explicação acima, para tanto, adianto ao estimado co-autor desse texto, que de muita valia este discorrer acima terá.

Como dito anteriormente, a história que estou precedendo foi contada em um bar. Era fevereiro, o calor comum da época do ano ultrapassava o de anos anteriores. O suor vertia da testa mesmo que esforço algum alguém fizesse.

Estávamos à mesa, minha esposa e eu, apreciando uma cerveja gelada para amenizar o calor quando ele entrou.

Trazia na mão esquerda uma bengala. As roupas, um tanto surradas pelo tempo, apresentavam sinal de descuido, manchas amareladas na gola da camisa, alguns furos na altura do peito, costuras abertas nas laterais da calça e nos bolsos da frente.

Não diferente das roupas, a aparência física acompanhava os trajes. Os cabelos tinham um brilho pálido, aparentavam estar molhados, mas traziam uma sensação de sujeira disfarçada. A barba por fazer, sem ser aparada de modo algum, nem nas extremidades e nem no volume, concretizavam o abandono total do asseio. Havia, de um lado e de outro, descolorações em virtude do cigarro, manchas de um tom ocre, ou até mesmo de um bege desbotado, circundadas por fios brancos e negros. Os bigodes, que se lançavam até a metade da boca, ofuscavam ligeiramente um sorriso em falência e repugnante, por conta da quase completa inexistência de dentes.

Nossa cerveja estava quase no fim. Questionei minha esposa se desejava outra. Concordou com a cabeça, e logo acenei ao garçom. No mesmo instante em que nossa segunda cerveja chegou, ouvi, via voz rouca e pausada, meu nome ser chamado. Busquei com os ouvidos e olhos o local de onde saíra o chamado. Transladei o olhar à frente, à esquerda, à direita e nada. Estava a minhas costas, era ele, o sujeito que há pouco descrevi. Levantei-me e cumprimentei o homem que me chamara. Não reconheci imediatamente, mas ao olhar fundo em seus olhos, dei-lhe um aperto de mão e um leve toque nos ombros.

O tempo e os caminhos transformam as pessoas. Fazem do jovem um não-jovem, do rico um não-rico, do pobre um paupérrimo...

Frederico era seu nome. Fazia algo entre treze ou quinze anos que não nos víamos, desde a década de 70. Foram bons anos aqueles, mas não-bons também.

Descendente de alemães, Frederico Hoffberg, nascera em Berlim, Alemanha Ocidental, no dia 14 de agosto de 1961, um dia após ter sido iniciada a construção do muro de Berlim. Seus pais, modestos comerciantes do subúrbio da capital ocidental haviam sofrido com a Segunda Guerra, e buscavam desde tempos acumularem economias para poderem sair do país. Os avós de Frederico morreram no campo de concentração nazista de Auschwitz em 1944. Seus pais, que se conheceram no mesmo campo, iniciaram a vida juntos um mês após o exército soviético ter chegado à capital do Reich e ter encontrado o corpo de Hitler carbonizado próximo ao bunker de Berlim.

No ano de 1970 a família Hoffberg chegara ao seu destino. Foram amparados por parentes próximos, que haviam fugido do regime nazista ainda em tempos de guerra.

Com as economias, a família Hoffberg, abrira uma modesta mercearia e iniciaram suas novas vidas, livres dos fantasmas do passado e dos espectros do presente.

O garçom trouxera mais uma cerveja, juntamente com outro copo. Frederico fez sinal negativo, sussurrou que tinha fome. Pedi ao garçom, muito atencioso por sinal, que trouxesse um suco e um lanche. Ele assentiu com a cabeça, e incluiu o pedido na minha conta. Estávamos em um silêncio constrangedor, quando Frederico rompeu com tom de desabafo...

- Bom te ver... Quanto tempo hein! Pois é... Vejo que está bem... enquanto eu encontro-me como podes ver...

Quando me separei da segunda esposa, obriguei-me a morar com minha mãe, já que a mais nova das irmãs se casara e deixou-a sozinha. Mamãe não estava bem de saúde, esquecia-se das coisas, confundia as pessoas, e às vezes conversava sozinha, como se estivesse dialogando com alguém.

O suco e o lanche chegaram. Frederico os devorou em instantes, e após uma desagradável eructação, retomou a história.

- Um dia fui visitá-la. Quase não me reconheceu; aliás, não me reconheceu, só soube quem era pelo fato de eu dizer. Convidou-me para morar com ela, pois nem sabia que eu havia me separado, pior ainda, não fazia ideia de que eu tinha casado novamente. Como me encontrava em uma situação financeira delicada e praticamente vivia na rua, resolvi aceitar.

No dia seguinte arrumei minhas roupas, meus livros, coloquei meu cachorro numa coleira e pedi a um amigo, que me cedia um paiol para dormir, que me levasse até à casa de minha mãe. Ele ficou radiante, de uma alegria que eu jamais tinha visto. Mas eu sabia que sua felicidade não era por mim, e sim por ele próprio.

Mamãe estava deitada no sofá da sala, mas não dormindo. Meu amigo se foi cantarolando Roberto Carlos: “não preciso nem dizer, tudo isso que lhe digo, mas é muito bom saber que você é meu amigo...”

Fiquei parado em frente ao portão chamando-a, mas ela não se levantava. Algo em torno de meia hora ela resolveu dar o ar da graça, foi até ao portão e questionou o que eu queria, e se fosse algo para vender ela não tinha dinheiro. Uma lágrima triste queimou meu rosto. Expliquei quem eu era e só assim abriu o portão. Deu-me um abraço apertado, ajudou-me com meus pertences e chutou meu cachorro, o Barão. Disse a ela que era meu. Ela consentiu sem gostar, fazendo uma cara de repugnância.

Na segunda-feira fui procurar emprego, a situação não era nada fácil. Fiquei buscando por uma semana, até que consegui um trabalho temporário em um supermercado. Como tinha certa experiência da época em que papai estava vivo, e nós ajudávamos na mercearia, não foi muito difícil, e dois meses depois me tornei efetivo como chefe de almoxarifado.

As coisas pareciam se encaminhar. Consegui um tratamento para mamãe, e ela teve melhoras consideráveis, mas o doutor que cuidava de seu quadro clínico fez muitas ressalvas acerca de fatores que poderiam desencadear um agravamento em sua situação, e que suas faculdades mentais poderiam se tornar transitórias. Acatei todas as recomendações e íamos seguindo a vida. Porém, algo que ela não suportava era a presença de Barão. Quando eu o deixava preso, ele latia sem parar, fato que a irritava muito, chegando ao ponto de fechar toda a casa em pleno dia de sol, ligar o televisor no último volume e fechar-se em seu quarto. Se eu deixasse Barão solto, ele destruía o jardim e os canteiros de hortaliças que eram para minha mãe um ótimo passatempo.

Eu gostava muito do Barão, havia sido um presente de minha última esposa, e como eu ainda a amava, ele significava muito para mim. Mas mesmo assim resolvi deixá-lo com meu amigo; ele não recebeu muito bem a ideia, mas como disse que era por pouco tempo, e nos conhecíamos desde a infância ele acatou.

Barão ficara com ele por doze horas e vinte e sete minutos.

Quando cheguei do trabalho à noite, ele, Barão, esperava-me ao portão. Doeu mais em mim, mas tive de lhe dar um corretivo. Ele ficou acuado por algumas semanas, e minha mãe mais tranquila.

No dia em que levei, pela primeira vez, minha nova namorada em casa, Barão rebelou-se. Começou a latir sem interrupções, com tanta intensidade, e com desproporcional força que mamãe saiu sem rumo. Deixei Clarice, a namorada, em sua casa e fui procurar minha mãe. Encontrei-a na estação rodoviária aguardando um ônibus para lugar algum... Levei-a para casa. Barão não latira quando me viu com mamãe. Pensei que havia sortido efeito a surra que tinha levado.

O tempo passou. Mamãe estava melhor. Clarice viera morar conosco. Barão tornou a ser rebelde.

Era uma sexta-feira, quando retornei do trabalho à noite, encontrei Clarice chorando ao portão. Ao avistá-la corri pensando na fatalidade que poderia ter acontecido com mamãe.

Ao adentrar em casa avistei mamãe sentada ao sofá, com manchas de sangue nas mãos e nas roupas. Questionei o que havia acontecido. Ela tinha os olhos mortos, pálidos, cobertos por uma nuvem negra de morbidez. Seus lábios sangravam. Os cabelos brancos, desgrenhados, estavam repletos de areia e gotas densas e rubras. A seus pés, um pedaço de madeira manchado de sangue e salpicado de pelos negros. Voltei a questionar, ela estática permanecia.

Clarice apareceu à porta. Sem nada entender perguntei à ela. Minha namorada estava em estado de choque. Nada respondia também. Nesse momento meu vizinho, com feições de espanto e medo, relatou-me o que havia acontecido.

Disse-me ele que logo após eu sair para o trabalho, Barão começou a latir e a forçar a corrente em que se encontrava preso. A moça, que era Clarice, foi levar-lhe comida e água. Ele a atacou. Não a feriu por estar preso. Ela, Clarice, correu para dentro de casa e pediu que minha mãe fechasse a porta. Fecharam a porta. Algum tempo depois, minha mãe saiu enfurecida. Barão não parara de latir. Mamãe apanhou um pedaço de madeira e desferira vários golpes no animal. O cão caíra, mas ainda respirava. Passados alguns minutos, Barão levantou-se e tornou a latir, porém sem tanta força. Minha mãe retornara, pegara a madeira e novamente bateu no cão, que lutava para manter-se de pé. Clarice observava tudo paralisada. O animal caíra novamente, mas tentava se reerguer com dificuldade. Mamãe, não satisfeita, tomou uma pá no paiol e começou a cavar um buraco para enterrar o pobre Barão.

Desferiu mais alguns golpes e jogou o cão na cova que fizera. O buraco não comportava o tamanho do animal, mas mesmo assim ela tentava cobri-lo de terra, deixando parte da cabeça para fora. Com os olhos abertos e respirando com dificuldade, Barão agonizava.

Tomei coragem e fui ver de perto a atrocidade. Barão estava morto. Enterrei-o com os olhos inundados de lágrimas e a alma enegrecida de tristeza. Quando terminei de enterrar meu cão, Clarice já havia ido embora e lavado suas coisas.

Minha mãe dormia no sofá.

No dia seguinte internei-a em uma casa de recuperação. Fechei tudo, apanhei uma mochila e deixei aquela vida para trás.

Hoje não tenho mais nada. Não tenho endereço fixo. Não tenho trabalho. Não tenho família. Não tenho nome. Chamam-me pela alcunha de Barão...

Gimi Ramos
Enviado por Gimi Ramos em 28/12/2018
Código do texto: T6537751
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