A ovelha que queria ser pastor

O aluguel

O que lhes contarei a seguir não se trata de uma estória. Porém, poderia ser uma daquelas que os pais de nossos pais contavam, nossos tios pescadores relatavam, nossos padrinhos aventureiros inundavam o ego, ou, como não poderia ser diferente, nossas vizinhas mais atentas inflavam o “papo” e disparavam com sua metralhadora oral...

Contudo, o que se irá discorrer aqui não é fomentado por imaginações férteis, e não se encontrará situações mirabolantes. Repasso, tão somente e com veracidade, a mais nua e crua verdade ao leitor, até por ser tal história simplória demais para causar espanto.

Daniel e Ana aguardavam o ônibus no terminal rodoviário, transparecendo aborrecimento.

Por conta de uma mudança de emprego, o jovem casal iria morar na cidade vizinha. Unidos havia dois anos, tinham um filho, Gabriel, que era um garoto forte e disposto, com uma inteligência acima do normal para sua idade. Levavam a vida de um modo simples, sem luxos, mas também sem muitas privações. Ana cuidava da casa e de Gabriel; Daniel fazia também sua parte.

Com meia hora de atraso o ônibus que os levaria para seu destino estacionou no terminal. Reclamações eram sussurradas aqui, esbravejadas ali. Porém tudo seguia seu ritmo: usuários indignados e funcionários indiferentes.

Sentaram-se na quarta ou quinta fila. Ana, como de costume, sentou-se à janela, pois sempre se sentia mal quando “viajava” de ônibus. Daniel sorriu ao ver a mulher abrir a janela tentando sugar todo o ar fresco daquela manhã.

No curto caminho entre uma cidade e outra, gratificante era a paisagem, que carregada de simplicidade, fazia aumentar a distância consideravelmente, dada a beleza do local. De um lado da rodovia o verde dos montes e o azul do céu traziam uma calma não contagiante, pois para os usuários daquela linha, o cenário já estava desgastado e sem atrativos. Ao se aproximar da primeira curva, avistava-se no lado posterior da estrada uma prateada e brilhante lagoa, que banhava toda a margem, donde ao longe pescadores e seus barcos flutuavam em busca do alimento, pondo em muitas faces um comedido sorriso de paz.

Daniel segurou a mão da esposa lhe avisando que já haviam adentrado na cidade. Ana, que havia cochilado, abriu os olhos rapidamente, fitando em várias direções para poder se situar. Desceram do ônibus e dirigiram-se até um bar para comer algo e pedir algumas informações.

A cidade tinha, em certos momentos, feições de progresso em virtude de algumas fachadas modernas e lojas mais requintadas. Em contrapartida, sua verdadeira face provinciana surgia em pequenos detalhes e muitos olhos, curiosos e não despreocupados com aquele casal que agora circulava em suas ruas.

Casas para aluguel apareciam em número considerável, porém, com preços um tanto exacerbados, por se tratar de uma minúscula cidade, que, tendo em vista outros centros, “aquilo” seria no máximo um bairro, para não a tratar de vila ou até mesmo comunidade.

Daniel e Ana estavam já cansados de procurar por um imóvel que lhe agradassem e que coubesse no orçamento. Em uma última tentativa questionaram a um senhor que se espreguiçava apoiado na porta de um bar. O simpático cidadão franzia a testa, fechava os olhos, coçava o nariz.... Tudo isso para resgatar do fundo da mente uma informação que servisse ao casal. Pensou, pensou, pensou e quando tudo parecia estar se encaminhando para o fim, todo aquele ritual iniciou-se, dando certeza que nada dali seria de concreto. Agradeceram a “gentileza” do nada, e continuaram seu caminho, de forma calma e leve, para que após a investida frustrada uma luz se acendesse. Pousaram próximo ao trevo de acesso à cidade, tentando encontrar uma saída para seu intento. Pensavam cada um de seu modo, mas os dois no mesmo ponto: uma casa para alugar. Como já passava das onze horas, tomariam o ônibus de volta em pouco mais de quarenta minutos, sentaram-se em uma calçada dando tempo ao tempo.

O movimento na rodovia era constante. Automóveis e caminhões cruzavam suas vistas com velocidade, trazendo uma espécie de remorso pelo que não ainda acontecera. Era uma sensação estranha. Receio e pavor se mesclavam à resignação tão rápido quanto o girar das rodas dos veículos, que em suas cores diversas, formas variadas, e tamanhos desiguais, faziam com que cada mente vislumbrasse a desgraça.

Ana consultou o relógio. Onze horas e quinze minutos. Daniel olhou para a esposa, questionando com os olhos qual seria o próximo passo. Ela divagou um instante e, como se por encanto, pediu ao marido para que se informasse com um rapaz que trabalhava em uma oficina de bicicletas que ficava ao lado de onde se sentaram. Daniel sinalizou positivo e beijou ternamente a testa suada e fria da esposa.

Dirigiu-se à oficina de bicicletas e questionou:

- Olá, bom dia, sabes me dizer onde encontro uma casa para alugar?

O rapaz, com um sorriso entreaberto, e o nariz sujo de graxa, indicou, com os olhos estrábicos, uma placa e logo respondeu:

- Aqui! O proprietário mora ao lado... Está em casa... É só chamar... O nome dele é Sr. Álvaro.

Daniel agradeceu e retornou para chamar a esposa. Ana levantou-se ao ver o marido se aproximando, e após ela jogar fora o cigarro que acabara de acender, os dois se dirigiram à casa do proprietário do imóvel.

Uma cerca alta e branca ladeava toda a moradia. A casa apresentava-se normal. Janelas de um marrom já castigado pelo tempo, e paredes de uma cor um tanto opaca, que se presume ter tido um dia o tom de um ocre ou areia escura, quando muito um pêssego não suave. Nos fundos, por sobre o telhado, avistava-se uma chaminé, que expelia uma fumaça cinza, muito parecida com nuvens carregadas. Uma velha senhora, com um gato aos pés, encontrava-se prostrada frente ao avermelhado fogão à lenha cozinhando algo em uma panela de ferro tão negra quanto a noite. No canto oposto ao da senhora, uma jovem, de uns vinte e tantos anos, cofiava repugnantemente esparsos e espessos fios que lhe ornavam o queixo redondo e apoiado em uma grossa camada de gordura que circundava o pescoço. Dividindo as duas absortas figuras, uma mesa de madeira extensa com toda a louça do café da manhã ainda por recolher, e um sofá, que embora tivesse um desenho não ultrapassado, possuía características de um mendigo.

Daniel e Ana pararam ao portão um tanto receosos. Um olhava para o outro aguardando que um tomasse a iniciativa de chamar o referido Sr. Álvaro. Daniel perdeu o medo e chamou indagando.

- Sr. Álvaro?

De acordo com o que me foi relatado e amiúde, Daniel nem terminara sua chamada/indagação que a senhora e a jovem já estavam a sua frente lhe convidando para entrar. Sinceramente, ao ouvir o relato desse momento, imaginei que as duas se tratassem de fantasmas. Ana ficou assustada com tamanha rapidez. O marido não conseguiu tempo para tal.

- O pai está ali, vou chamar... Entrem... Querem um cafezinho? Tem um bolo novinho, não querem um pedaço...

Todo esse discurso era metralhado em dose dupla. Não havia tempo para resposta: Ou se bebia o café, ou (na melhor das hipóteses) se sairia correndo sem olhar para trás. Mas como a necessidade faz com que em certos momentos não sejamos donos de nossas ações, Daniel e Ana aceitaram o café, o bolo ficara para outra oportunidade. Embora o café não se tratasse de uma maravilha, Ana o bebeu com comedida vontade, pois ele premeditava um cigarro, e naquelas circunstâncias era o melhor a se fazer.

Daniel engolia o último gole “daquilo” quando uma porta rangeu a suas costas. Era ele: o Sr. Álvaro. Num ato imediato, pousou a xícara sobre a mesa observando a figura que lhe surgira à frente.

Sr. Álvaro era um homem corpulento, de estatura alta, representava uns setenta anos de idade, não mais. Pesava algo em torno de cento e trinta quilos. Tinha os cabelos grisalhos e penteados para a esquerda. Não havia um fio sequer que estivesse fora de ordem, eram todos alinhados e muito brilhantes. O tom, de aço escovado visto na cabeça do homem acentuava-se por conta do leve toque da luz solar refletida pela telha transparente, que se antecipava à porta da cozinha. Abaixo do nariz um acanhado bigode, na testa, reluzente e de poucas linhas de expressão, algumas gotas de suor lhe vertiam. Trajava ainda roupas de dormir. Uma camisa bege claro com algumas manchas de café à altura do peito; uma calça listrada de elásticos já cansados – isto era visto por conta de que em um dos lados, na cintura, um grande nó dava o ar da graça -; chinelos pretos e uma bengala confeccionada com um cabo de vassoura, tendo em sua parte superior, para acomodar a mão, junções usadas para encanamento doméstico.

- Entra aqui meu filho...

Resmungou com uma voz cansada o velho senhor. Daniel lhe obedeceu e foi ao seu encontro.

- Tu és evangélico meu filho?

Questionou Sr. Álvaro com voz agora mais firme e séria.

Daniel hesitou um instante, buscando uma resposta que não desagradasse o possível vizinho.

- Não sou evangélico, mas acredito... Respondeu Daniel de uma forma não findada e totalmente ininteligível.

- Acredita em Deus então... Isso é muito bom meu filho... Nessa casa tudo é do Senhor... Todo mundo aqui é temente a Deus... Nada que se faz aqui vai de encontro aos ensinamentos do Senhor Jesus Cristo, que é o poder maior, é nosso Pai... Já foi a uma igreja evangélica meu filho? Se não foi, deveria ir! Lá se entra e sai como se estivesse flutuando... Esse é o poder do Nosso Senhor Jesus Cristo...

Daniel já estava tonto com tudo aquilo. Há tempos não era alvejado desse modo. Apesar de não ser dado com “essas coisas de igreja” e tudo mais, era uma boa pessoa. Levava a vida de um modo tranquilo. Era um homem trabalhador, bom pai e bom marido, ao menos pensava que fosse. Vivia para o filho, para a esposa e para o lar. Não era um intelectual, mas tinha sabedoria e conhecimento de assuntos vários.

Embora não conseguira terminar os estudos, possuía um gosto requintado, algo próprio de acadêmicos “de verdade”, não desses que somente frequentam uma universidade para obter um diploma. Tinha verdadeira obsessão pelo conhecimento. Era demasiado perfeccionista com determinadas coisas, mas não comprometia seu caráter alegre e prestativo.

Os dois homens sentaram-se à mesa. O mais velho próximo à parede e o mais jovem de costas para um longo corredor, que supostamente levava aos quartos, de onde provinha um odor pesado de mofo e abandono.

- Sim, já fui...

Daniel respondeu um tanto áspero, tendo ciência que não seria nada agradável a conversa por vir.

Sr. Álvaro não tinha outro assunto, salvo a igreja e sua religião, e para tudo (ou quase) tinha uma passagem bíblica para ilustrar...

A vinha de Nabote

Sr. Álvaro possuía um automóvel que ficará como herança de sua mãe, e deste automóvel ele não se separaria nunca. O citado carro era um Volkswagen, modelo Fusca, ano 74, branco, com bancos, painel e volante originais. Rodas de fábrica e pneus trocados uma única vez. No interior, revestido de jornais, um forte aroma de talco de lavanda impregnava as narinas de quem tivesse o disparate de conhecê-lo.

Para explicar o motivo do “não vendo, nem empresto, nem dou”, como insistia em repetir, apanhou um espesso volume da bíblia e um par de óculos que se encontravam na cadeira ao lado e folheou até chegar ao seguinte texto, o qual fez questão de informar ao leigo Daniel, os ditos capítulos, versículos e afins. Cravou as lentes sobre o nariz e iniciou a leitura, pausada e repleta de sentimentos, alicerçadas com variados tons de voz.

- Nabote, o jizreelita, tinha uma vinha em Jizreel junto ao palácio de. Acabe, rei de Samaria. Então Acabe falou a Nabote, dizendo: Dá-me a tua vinha, para que me sirva de horta, pois está vizinha ao lado da minha casa; e te darei por ela outra vinha melhor: ou, se for do teu agrado, dar-te-ei o seu valor em dinheiro.

Porém Nabote disse a Acabe: Guarde-me o SENHOR de que eu te dê a herança de meus pais. No findar da passagem ateve-se um instante. Tirou os óculos, secou as lágrimas e retomou a leitura.

Então Acabe veio desgostoso e indignado à sua casa, por causa da palavra que Nabote, o jizreelita, lhe falara, quando disse: Não te darei a herança de meus pais. E deitou-se na sua cama, e voltou o rosto, e não comeu pão.

Porém, vindo a ele Jezabel, sua mulher, lhe disse: Que há, que está tão desgostoso o teu espírito, e não comes pão?

E ele lhe disse: Porque falei a Nabote, o jizreelita, e lhe disse: Dá-me a tua vinha por dinheiro; ou, se te apraz, te darei outra vinha em seu lugar. Porém ele disse: Não te darei a minha vinha.

Então Jezabel, sua mulher lhe disse: Governas tu agora no reino de Israel? Levanta-te, come pão, e alegre-se o teu coração; eu te darei a vinha de Nabote, o jizreelita.

A história seguiu ao fim sem maiores transtornos para Daniel, que àquela altura dos acontecimentos desejava nunca ter entrado naquela casa.

O emocionado senhor secou novamente as lágrimas e adentrou no assunto do aluguel. As recomendações foram tantas que preservaremos o leitor de tais.

Com tudo acertado (ao menos para o Sr. Álvaro), Daniel usou de um estratagema para poder respirar. Afirmou que necessitaria ir até à casa de seu novo patrão apanhar a quantia para efetuar o pagamento de primeiro mês de aluguel. Sr. Álvaro concordou, mas fez uma ressalva:

- Olha meu filho, saibas que os tenho agora como filhos, tu e tua mulher, e teu pequeno como neto.

Considerou o velho senhor com os olhos úmidos.

Aquela imagem pôs no coração de Daniel um fragmento de piedade, não de pena, mas solidário.

Daniel e a esposa já estavam próximos ao portão quando o Sr. Álvaro alertou:

- Meus filhos, venham logo, que então vocês almoçam aqui e nós faremos uma oração para abençoar a chave do imóvel.

O casal fechou o portão e seguiu em frente, olhando para o horizonte, pensando (não se sabe exatamente), sobre tudo o que tinham passado naqueles minutos que ali estiveram.

A sensação era de que haviam se transportado para outra dimensão, outra época. Um tempo paralelo em que os valores e

as atitudes tinham outro peso e outra medida. Tudo naquela casa tinha um ar diferente, uma atmosfera que projetava um mundo diferente do que vivemos. Era, decididamente, outra dimensão.

A bênção das chaves

Ana e Daniel, ao se sentirem seguros dos olhares dos habitantes da casa, respiraram fundo e esboçaram considerações. Ana titubeou. Daniel também. Ela ariscou algo, mas não findou. Ele resolveu sorrir. Sorriram os dois.

- O que foi aquilo?

Questionou o marido, transparecendo total debilidade sobre o assunto.

- Como assim?

No mesmo tom ponderou a esposa, não sabendo o que havia se passado no interior da casa. Pois com ela foi, na medida do possível, algo normal pelas circunstâncias e pelo contexto.

Duas mulheres, que aparentavam estar reclusas em um mundo aquém deste, e em uma época que há muito se foi. A senhora e a jovem, trocaram com Ana apenas gentilezas, ficaram extremamente felizes com a ideia de terem uma nova vizinha, alguém diferente para conversar.

Daniel explicou o acontecido para a esposa. Ela espantou-se. Circundaram a quadra e decidiram voltar e fechar o negócio.

A oficina de bicicletas que ficava ao lado da casa de Sr. Álvaro findava o expediente, faltavam cinco minutos para o meio dia. O sol estava em centro, brilhante e forte. As nuvens, acanhadas, apareciam como pinceladas brancas em um vasto pano azul, dando ao fim daquela manhã um ar sereno e tranquilizante.

O casal parou novamente em frente ao portão. Para transformar esse ato em uma constante, ficaram imóveis um instante, olharam-se e replicaram juntos:

- Sr. Álvaro?

Sorriram, e logo a senhora apareceu.

O homem surgiu à porta com um breve e taciturno sorriso. Chamou-os para entrar.

O casal obedeceu. Sr. Álvaro já se encontrava sentado à mesa com uma Bíblia Sagrada à mão. Convidou marido e mulher para sentar-se e iniciou dizendo:

- Negócio fechado então?

Daniel afirmou com a cabeça. O homem levantou-se e pediu que se unissem em um círculo, dando as mãos e iniciou...

- Senhor, abençoa estas chaves, abençoa esta família, pois assim como Vós, Senhor, eles também são três, pai-mãe-filho, e Vós, Pai, Filho e Espírito Santo...

...E antes do “amém” o velho estendeu a mão direita e apanhou o dinheiro do primeiro aluguel, que Daniel havia deixado sobre a mesa, no momento em que ouvira o “negócio fechado então?”.

- Amém!

O convite

Sr. Álvaro era um crente fervoroso. Grande parte de seu tempo era dedicado na busca de novas ovelhas para o rebanho de sua igreja.

Mesmo com dificuldades para caminhar, dado seu peso e o problema em uma das pernas, o que lhe obrigava a usar uma bengala, ele gastava uma considerável fração de tempo diário fazendo convites para os cultos das quintas, sábados e domingos.

A abordagem era sempre a mesma. Era dotada de método, oratória e persuasão disfarçada de desafio ofensivo.

Quanto ao método; cercava a vítima com o pretexto de uma informação, aproveitando a boa vontade do transeunte que muitas vezes parava por se tratar de um senhor de idade avançada e equipado com uma bengala. No final da conversa imposta, oferecia um folheto com uma mensagem bíblica, geralmente do Antigo Testamento, ou um ensinamento de Cristo. Como pano de fundo do texto, sempre uma bela paisagem; vezes um pôr do sol, vezes um rio caudaloso, vezes um caminho entre árvores, vezes um jardim florido; já no verso, continha o endereço e o nome da igreja, bem como um convite a participar dos cultos, promovendo todo o tipo de cura; desde chagas da alma à financeira.

Os mais pacientes ouviam o senhor falar, mas todos que já conheciam, cortavam caminho, davam meia volta ou, não raro, passavam quase correndo, fingindo não ouvir o apelo e sempre olhando para o lado oposto ao do velho.

Certa oportunidade, após um mês que o casal residia em sua propriedade, resolveu o Sr. Álvaro fazer uma visita. Coincidência! Justamente no dia de cobrança do aluguel.

O filho já dormia.

O casal já havia jantado e fazia as contas do mês.

Ouviu-se alguém bater à porta. Daniel foi abrir. Era o Sr. Álvaro. Por educação, convidaram-no para entrar, mas logo avisando que já iam levar o dinheiro do aluguel.

O homem logo se acomodou sem cerimônias. O casal entreolhou-se com feição de aborrecimento. Sabiam do enfado e do desconforto que o velho conseguia causar.

Daniel apanhou o dinheiro do aluguel e entregou ao Sr. Álvaro, que disse em tom ameno não haver pressa; porém apanhou as notas com afinco enfiando com destreza no bolso interno do paletó surrado e repleto de fios puxados e descosturas visíveis.

Ofereceram café, ele aceitou. Ofereceram biscoitos, ele aceitou. Ofereceram mais café, ele aceitou. Ofereceram mais biscoitos, ele aceitou. Pararam de oferecer...

Quando se levantava para ir embora, retirou do bolso da calça um folheto que sobrara do dia cansativo de labuta em “ajuntar”, como o mesmo dizia, mais ovelhas para o rebanho.

No folheto, com uma estrada em bifurcação, ladeada de frondosas árvores, lia-se o seguinte texto:

Porás à parte o dízimo de todo o fruto de tuas semeaduras, de tudo o que teu campo produziu cada ano. Comerás na Presença do Senhor, teu Deus, no lugar que ele tiver escolhido para nele residir o seu nome... (Deuteronômio XIV 22-23).

Daniel tomara o folheto já enxovalhado e colocou-o sobre a mesa.

Sr. Álvaro agradeceu a hospitalidade, reforçou o convite do folheto e sumiu na escuridão da porta logo fechada as suas costas, nem bem descera os degraus que davam acesso à porta principal.

Marido e mulher riram.

Trocaram um abraço terno.

Beijaram-se e foram dormir...

O alívio

O assédio estava se tornando insuportável. A partir da primeira visita do Sr. Álvaro aos novos inquilinos não houvera um dia sequer que o “ajuntador” de ovelhas não insistia ao casal que fossem a sua igreja.

A abordagem não tinha mais o método, a oratória e a persuasão. Tudo se dava misturado, aos “trancos e barrancos”, quase uma imposição, e às vezes dotada de chantagem.

Dizia...

- Hoje haverá culto e Nosso Poderoso Jesus Cristo me disse que os espera, pois caso não forem a situação ficará mais difícil... Lá entrarão como pecadores e sairão aliviados de uma cruz, que por conta de seu mundo sem Deus, lhes fora colocada às costas...

O casal obrigou-se a ceder, e prometer ir ao culto.

Era domingo. O dia amanhecera com um sol radiante e um céu límpido. Ao primeiro sinal de vida dos inquilinos, Sr. Álvaro já gritava ao longe que não se esquecessem do culto à noite. Daniel fizera sinal positivo com o polegar, que mesmo dizendo sim, desejava apontar para baixo.

Como não havia remédio, remediado estava.

Foram ao culto.

Entraram e logo avistaram Sr. Álvaro e família nos primeiros bancos. O entusiasmado senhor fazia sinal para que se assentassem próximos, pois já havia reservado lugar aos três.

O culto nem iniciara e o casal já se dava conta do sacrifício que passariam. Murmúrios de orações discrepantes e destoadas, todas, porém, intercaladas de “Aleluias”, “Glórias a Deus”, “Queima Senhor” e outras tantas que por conta da falta de harmonia faziam-se ininteligíveis.

O Pastor subira ao púlpito. Fora este o único momento de silêncio nas duas horas de culto. Salvo isto, os gritos irritantes, os cantores desafinados, todos falando e orando ao mesmo tempo, de modo que era impossível haver concórdia entre as ovelhas do rebanho.

Pouparei os leitores dos pormenores, dado que: em primeira instância até minha cabeça dói só de lhes narrar; em segunda instância, pelo simples fato de que não se consegue absorver muita “coisa” frente ao turbilhão destoado de súplicas, lamúrias, sussurros e gritos.

O casal e o filho chegaram ao lar, exaustos. Ana sorria compulsivamente. O marido também sorriu com o filho adormecido aos braços, porém questionou o motivo do riso da esposa. Ela, ainda sorrindo sem medidas, falou entre as cativantes gargalhadas...

- De uma coisa o velho tinha razão...

Continuou sorrindo, agora loucamente. O marido, assustado, curioso questionou a razão. Ela respondeu mais serena e sem riso.

- Verdade! O velho tinha razão. A pessoa sai de um culto aliviado. Com aquela gritaria desarmoniosa, é impossível que o silêncio do lar e a companhia da família, não aliviem o peso de qualquer cruz que supostamente fora colocada em nossas costas...

Riram juntos novamente. Colocaram Gabriel no berço e foram “dormir”.

Os desaparecimentos

Perdoem-me os leitores por não ter lançado luz anteriormente acerca dos desaparecimentos do Sr. Álvaro. Esses ocorridos se davam ao cabo de tais circunstâncias; quando não estava nas ruas a “ajuntar” ovelhas para o rebanho; quando se encontrava em casa, geralmente dormindo ou sentado ao velho estofado bebendo café e lendo a bíblia; quando estava na igreja bajulando o pastor, e quando se encontrava nos cultos e nas vigílias.

Salvo essas quatro circunstâncias, Sr. Álvaro banhava-se, perfumava-se e desaparecia com seu automóvel. Afirmava que iria espalhar as “boas novas” nas cidades vizinhas, buscando desse modo salvar mais almas.

“Vezes por outras”, trazia consigo um andarilho, roto e entregue ao mundo para pregar o Evangelho. Dava-lhe o que comer, e oferecia um banho e roupas limpas para o culto mais próximo. Como dito, isso se dava “vezes por outras”, e o sujeito trazido, estando bem alimentado, limpo e de roupas “novas”, apanhava seus pertences e desaparecia, tamanha era a impertinência do velho Sr. Álvaro.

Havia na cidade muitas teorias e especulações sobre os desaparecimentos do homem.

Uns diziam que saia o velho em busca mesmo de novas ovelhas, porém tentava usurpar fiéis de outras placas, digo, igrejas concorrentes; outros teorizavam que ele ia à prostíbulos; aqueloutros firmavam que simplesmente saia de casa para aliviar toda a pressão sofrida pela labuta de “ajuntador” de ovelhas. Havia também, os que juravam de “pés juntos” que o velho era um safado, e mantinha outra família.

Porém, o certo é que Sr. Álvaro desaparecia por volta das seis horas da tarde e retornava as dez e trinta, onze horas da noite.

Chegava mansamente. Descia do automóvel, abria o portão com dificuldade, parecendo meio tonto, o que deixava mais uma teoria no ar (saía para beber). Estacionava o carro nos fundos da garagem e adentrava como um felino, obeso, mas um felino, e buscava a lâmpada que ficava acesa, mas ia tateando a parede até o quarto, que ficava fora da edificação da casa, onde dormia nos dias de desaparecimento.

Tornava a aparecer no dia seguinte.

Havia também os que diziam que passava a noite no automóvel, pois a esposa, às vezes, obstruía o quarto da garagem, com um amontoado de caixas, cadeiras e outras parafernálias e, não obstante, fechava a casa com os trincos internos, de modo que as chaves que o velho tinha presas ao chaveiro de nada adiantavam.

Teorias a parte, a vida seguia seu ritmo. “Ajuntar” ovelhas, dormir, ler, bajular, perturbar, orar e desaparecer...

A tragédia

Oito horas da manhã.

Daniel acordara mais cedo naquele sábado, feriado municipal, dia de emancipação político-administrativa.

O inverno iniciou com um belo dia. Céu limpo, sol intenso e um clima ameno.

A esposa acordou com o aroma do café. O marido encontrava-se encostado à porta de entrada, com uma xícara de café à mão, absorvendo toda a atmosfera de tranquilidade daquele dia que se iniciava. Sentiu os braços de Ana o prender pela cintura e os lábios suaves tocarem seu pescoço, causando-lhe arrepio. Daniel voltou-se, beijou a amada e foi lhe servir um café. Sentaram-se à mesa. Gabriel ainda dormia.

Combinavam que ao despertar do filho, iriam ao mercado fazer algumas compras para o final de semana, quando foram interpelados por gritos e um intenso falatório. Daniel e a esposa correram até a rua. Ao longe, algo em torno de oitocentos metros, um ônibus encontrava-se parado em diagonal na rodovia que rasgava a cidade.

À frente do enorme veículo um corpo estendido e muito sangue, rodeado por uma pequena multidão. Sentado às margens do asfalto um homem chorava desesperadamente. Era o motorista do veículo, o ônibus de um grupo musical que passava pela região. Instantes depois, outro homem aproxima-se chorando em desatino e lança-se sobre o corpo, tentando reanimá-lo. Este era o pai. A mãe sucumbiu antes de ver o filho falecido, dilacerado pela colisão e por ter sido arrastado por alguns metros sobre o gélido asfalto, ainda úmido pelo sereno da madrugada.

Daniel encontrou um conhecido que lhe relatou o que havia ocorrido...

- O garoto trazia a irmã mais nova pelas mãos, eu estava sentado em uma cadeira fora do bar... quando os dois chegaram às margens da rodovia a menina soltou a mão do irmão e correu para atravessar para o outro lado; o irmão a chamou e foi atrás, porém ao ver que o ônibus se aproximava, e outros veículos vinham em direção contrária, resolveu interromper a travessia e retornou. Não havia mais tempo. O motorista freou o ônibus, mas a fatalidade já era certa... Apanhou o garoto e o arrastou preso ao para-choque do veículo, deixando, por conta do atrito do corpo com o asfalto, pedaços da curta vida que ali se foi...

A esposa de Daniel tinha o pequeno Gabriel ao colo. O marido ao ver o filho chorou e abraçou-os de uma só vez, transportando em seu peito a dor do pai e da mãe do pobre garoto, que ao cuidar da vida da irmã sacrificou a própria.

O céu ganhou mais um anjo, e a terra chorara mais uma vida inocente que se fora.

O dia nublou.

Daniel, esposa e filho foram ao mercado.

Na rodovia a polícia cuidava dos procedimentos. Os pais do menino, ainda em choque foram levados ao hospital...

No bar, que ficava quase em frente à tragédia, um candidato a vereador entregava santinhos e apertava as mãos dos transeuntes com um sorriso puro e amistoso, mendigando atenção e votos...

A posse

Sr. Álvaro sentou na primeira fila de bancos da igreja. O ataúde ficara disposto no lugar do púlpito. Os fiéis chegavam aos poucos e, em fila, iam se despedindo do Pastor Humberto da Silva.

O chefe da igreja local, a qual Sr. Álvaro frequentava com a família e chamava de sua, fora o titular por vinte anos. Era um senhor obeso, morbidamente obeso, de olhos estalados, cabelo grisalho e muito bem penteado. Tinha enormes orelhas, onde, juntamente com o comprido e fino nariz, serviam de suporte para os óculos enormes e muito espessos, dado o elevadíssimo grau de miopia. Vestia sempre ternos negros e camisas alarmantes, amenizadas pelas gravatas neutras. Explosivo e contundente tinha, no dom da oratória, seu maior trunfo para arrecadar cifrões à “causa” de Cristo.

Falecera aos sessenta e cinco anos, vítima de um câncer no pulmão em virtude do cigarro que fumava às escondidas dos fiéis. Deixou a viúva, com trinta e cinco anos de idade, e dois filhos advogados, Isaias e Izael, com trinta e vinte e cinco anos respectivamente, frutos, indubitavelmente, de seu primeiro casamento.

O templo estava lotado.

O Ministro encarregado do culto, da despedida e da posse do novo pastor, ainda não se encontrava. Sr. Álvaro estava impaciente, esperava aquele momento por uma década. Tinha ele absoluta certeza que o irmão Humberto, havia lhe indicado para ocupar seu lugar, visto que o pastor deixara uma carta de recomendação redigida poucos dias antes de falecer.

Chegara o Ministro com meia hora de atraso. Ele seguiu à risca todos os procedimentos, e deixou para o final a revelação do nome do pastor que comandaria a igreja após a morte de Humberto da Silva.

Abriu um envelope, que continha o timbre da congregação, e retirou a folha quer confirmava, de acordo com a matriz da igreja, que ficava no sudeste do país, o nome do novo condutor daquele rebanho.

A bengala do Sr. Álvaro caíra após ouvir o nome de Cândido Gouvêa. Não entendeu o motivo da escolha, pois contava como certa a indicação do compadre. Uma lágrima de ódio correu-lhe pelo rosto, queimando até cair sobre a lapela do paletó que comprara para a ocasião.

O Pastor Cândido subiu ao altar para seu primeiro sermão como novo chefe da congregação local.

Recebeu as congratulações do Ministro e fitou suas ovelhas com um olhar terno e piedoso.

Agradeceu as saudações e surpreendeu a todos negando a indicação, após assinar o papel da posse. Conjecturou que seria uma injustiça, pois por pouco tempo ali estava, e que nada mais justo, nomear, ele mesmo, o Sr. Álvaro Antunes como novo pastor.

Os presentes dividiram os aplausos. Uns regozijavam com a nova indicação, e outros aplaudiam o ultraje.

Sr. Álvaro subiu ao altar e agradeceu, firmando um novo compromisso, e uma nova união para que sua igreja buscasse novos horizontes e alçasse voos inimagináveis, alicerçando com bases fortes nas palavras do Senhor, “ajuntando” cada vez mais novas ovelhas para o seu rebanho.

O homem chegou ao lar com a família dominado pelo júbilo, regozijando cada instante com imensurável consistência.

O sábado findara. Sr. Álvaro sentou-se ao sofá, ligou o televisor e deixou o peito e a alma explodir de felicidade.

No aparelho, o jornal tinha como manchete principal os conflitos no Oriente Médio.

Acordou-se cedo no domingo.

Bebeu o café, que já havia sido posto pela esposa.

A filha ainda dormia. Passara uma noite desagradável por conta da asma.

Falou para a mulher o quão feliz estava.

Ela o parabenizou com seu riso desdentado.

Não foram ao enterro, pois a filha poderia apresentar pioras. Mas o fato é que não se importava com tal. O que desejava já havia conseguido.

O velho transbordava felicidade. Fora para frente de casa esperar felicitações dos "irmãos” que porventura ali passassem. Duas horas depois se cansou. Nenhuma alma cruzara sua frente. Conseguiu apenas gritar para Daniel que havia conseguido o que por tempos almejava. O jovem fizera um aceno parabenizando-o e logo deus às costas.

Em seu primeiro domingo como Pastor Antunes, fizera um sermão inflamado, repleto de gestos e muito suor.

Findara seu primeiro culto dizendo.

- Como seu novo Pastor, nada lhes faltará, com a Graça de Nosso Senhor Jesus Cristo. Aleluia Irmãos!

A igreja, em coro uníssono, retribuiu com aleluias cansadas.

Foi para casa, banhou-se, perfumou-se e saiu com seu Volkswagen, modelo Fusca, ano 74, branco, com bancos, painel e volante originais. Rodas ainda de fábrica e pneus trocados uma única vez.

No interior nada mais de jornais, e o aroma de talco lavanda fora substituído por um perfume próprio para automóveis que recém chegara ao mercado. Retornou no horário habitual e foi dormir...

Gimi Ramos
Enviado por Gimi Ramos em 28/12/2018
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