SETE

Ele acordou e foi olhar as horas. O relógio estava parado. Exatamente às sete horas. Era sete de julho. Aquilo o deixou um pouco intrigado, mas durou pouco e ele esqueceu. Ele também não lembrava, mas naquele dia fazia sete meses que ela o havia deixado. Desempregado e sem qualquer recurso, sem amigos que o ajudassem, pois todos já o haviam deixado de lado. Ia ser posto para fora do apartamento, porque o aluguel estava atrasado há muito tempo. Não tinha como pagar e não conseguia arrumar um emprego, por mais que tentasse; e ele tentava, todos os dias. Tudo estava meio que bagunçado ali e em sua vida toda. Vanessa nunca mais tinha dado notícias, nem mesmo ligara. Quando ele ligava, ela não atendia. Ela o havia esquecido mesmo, pensou. Ela estava certa, pensou novamente. Não tinha futuro com ele, nem mesmo ele tinha qualquer futuro, pensou com um sorriso triste, e uma vontade de chorar. Não chorou.

Levantou-se, tomou banho e saiu. Como sempre, foi procurar emprego. Ia calmamente pela calçada, quando se deparou com uma casa lotérica. O desespero o fez entrar. Tinha uma pequena fila. Ele era o último, teria que aguardar um pouco até chegar sua vez. Enquanto isso, ele olhava para as pessoas que ali estavam e pensava, com pena, que havia muita gente querendo ganhar dinheiro fácil. Uma pena maior sentia de si mesmo, que nunca havia feito nada parecido. Agora, parado ali, tinha medo de não mais conseguir se reerguer. De ir cada vez mais fundo, até não poder mais voltar. Olhou as horas, viu de novo que o relógio estava parado, havia se esquecido. O homem que estava à sua frente foi atendido e então chegou a sua vez. Fez o jogo, recebeu o bilhete e saiu. Tinha esperança, mas não muita. Seguiu sua jornada em busca de um emprego, nada conseguiu naquele dia, como em todos os outros.

Chegou em casa já quase anoitecendo. Estava cansado demais. Tirou os papéis que tinha no bolso e os pôs sobre uma mesinha de centro. Inclusive o bilhete do jogo. Tirou a roupa e foi tomar banho. A janela estava aberta e um vento frio entrou pelo quarto levando alguns dos papéis que ali estavam. Muitos caíram no chão, um voou para fora e foi descendo levemente. Ele saiu do banho, muito cansado se jogou na cama e dormiu com uma única coisa no pensamento, Vanessa. Ela era loira de olhos escuros, uma coisa que muito lhe encantava. Mais do que as loiras de olhos verdes ou azuis. Não era muito alta, mas tinha um corpo bem feito e um humor sensível e inteligente. Sorria de tudo que tinha graça, mesmo que só para ela. Ele gostava de vê-la sorrindo, o que acontecia com muita frequência. Com o pensamento nela, seus olhos foram ficando pesados e tudo foi escurecendo e seus sentidos se perderam naquela lembrança.

Quando acordou já eram quase dez horas da manhã. Ele percebeu pelo sol que entrava pela janela. Não quis levantar, o desânimo havia tomado conta de tudo. Não tinha forças mais para nada. Ele se deixou ficar ali deitado por mais algumas horas, até que sentiu fome e resolveu sair para comer alguma coisa. Seguia pelo mesmo caminho do dia anterior. Quando passava em frente à casa lotérica, viu uma faixa dizendo que o ganhador do prêmio tinha saído dali. Ele então entrou, pegou o resultado e viu que eram os números que havia jogado. Meio sem reação, ele saiu pela rua, de volta ao prédio. Não tinha certeza de onde havia colocado o bilhete do jogo. Ficou angustiado. Quando chegou ao apartamento, olhou em todos os lugares possíveis. Nesse momento, lembrou que havia deixado os papéis que estavam no bolso da roupa, no dia anterior, sobre a mesinha. Mas não encontrou nada ali, só uns papéis jogados no chão. Virou e revirou tudo, nada. Desceu para procurar na rua, achando que o vento poderia ter levado. Andou de um lado para o outro e não encontrou. Era um pobre milionário naquele momento.

Subiu novamente, desolado. Não via nada à sua frente, só desespero. Sentiu que o mundo tinha acabado. Não conseguia acreditar no que tinha acontecido. Era mesmo um perdedor. Chegando lá, ele ligou para ela, achando que ela não o atenderia, mas atendeu. Não quero mais falar com você, me deixa em paz, foi o que ela disse. Ganhei na loteria, disse ele. Ela começou a sorrir, e desligou. Ele não tentou mais. Caiu sobre a cama, chorou. Depois de alguns minutos, saiu para a varanda. Olhou para baixo, era bem alto. Ele morava no quinto andar. Lá embaixo, numa calçada larga, havia duas árvores, que estavam justamente sob sua varanda. O dia corria silencioso, demais até. Ele chegou um pouco mais próximo e começou a olhar para baixo, talvez fosse uma boa ideia acabar com tudo naquele momento. Será se ela se sentiria culpada. Talvez não. Pensou. Não faria aquilo, decidiu. Mas, no mesmo instante, soprou um vento mais forte e ele perdeu o equilíbrio e caiu. As árvores amorteceram a queda e ele não morreu. Foi levado ao hospital, inconsciente.

Quando ele acordou, a enfermeira que cuidava dele naquele momento, disse que ele teve muita sorte, as árvores tinham amortecido a queda e ele só tinha quebrado sete costelas. Ela perguntou por que ele havia feito aquilo, ele disse que não foi de propósito, que se desequilibrou quando olhava para baixo. Talvez ela não tenha acreditado, pensou. Mas isso não tinha importância. Perguntou se alguém tinha ido visitá-lo enquanto esteve inconsciente. Ela disse que não. Ele já esperava por isso, mesmo assim sentiu certa tristeza, que não deixou transparecer. Resolveu naquela hora que seria feliz dali para frente. Que a vida tinha lhe dado uma nova chance, ele não a desperdiçaria. Perguntou quando teria alta, ela disse que em poucos dias. Ele sorriu e agradeceu. Sentia algumas dores, mas nada que pudesse incomodar tanto. Depois de alguns dias, como a enfermeira havia dito, ele foi para casa, pensando que talvez já tivesse outra pessoa morando em seu lugar. Não importava também, moraria na rua se fosse preciso.

Chegando ao prédio foi bem recebido por todos os vizinhos. Parecia realmente mudado, diziam. E estava. Seu apartamento estava como antes, desarrumado, mas sem outro morador. Ele dormiu o resto do dia. À noite, ele resolveu sair e dá um passeio pela rua. No saguão do prédio, num velho relógio de parede, ele olhou as horas, 21. Quando chegou lá fora, resolveu sentar na calçada, sob as árvores que o haviam amparado. Ficou olhando a rua e o pouco movimento de carros e pessoas. Imaginou que todas estavam indo ou vindo de algum lugar, que iam comprar coisas, ou passear, ou namorar, ocupar suas mentes e corpos em alguma tarefa, tudo muito humano e natural. Sentiu-se como parte do mundo, como alguém que estava realmente vivo e precisava fazer alguma coisa, como todo mundo estava fazendo. Lembrou uma vez mais de Vanessa, resolveu esquecê-la e, como despedida, pensou no seu sorriso uma última vez, sorriu com a lembrança. No mesmo instante, por ironia ninguém sabe de quem, um vento mais forte fez balançar os galhos das árvores e alguma coisa caiu sobre ele, levemente, bailando com a brisa. Era um pedaço de papel. Ele pegou, olhou, mas não conseguia acreditar. Era o bilhete do jogo. Estava novamente rico, muito rico. Quebrou a promessa e lembrou-se de Vanessa outra vez, sem saudade, só com pena.

João Barros
Enviado por João Barros em 28/12/2018
Reeditado em 28/12/2018
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