SILICO, O VERMELHO
Era a fazenda do major. O homem veio do Rio, transferido como segundo-tenente; conheceu a filha de um grande pecuarista, gente que manda na região, casou-se com ela e herdou, por consequência, uma fazenda de muitas sesmarias, com milhares e milhares de cabeças de gado: bovinos, ovinos e equinos.
Na era sessentaequatrista, ascendeu rapidamente ao posto de major, e sua fazenda evoluiu de pecuária para agropecuária, dedicando-se também à orizicultura. O sucesso foi tamanho, que o major solicitou passagem para a reserva. Obteve-a na patente de tenente-coronel, como era a regra!
Tudo ia de vento-em-popa em seus empreendimentos, pois ganhava importantes prêmios com seus touros da raça Devon, e sua lavoura de arroz era premiada pela alta produtividade. Mas, eis que um dia aparece na fazenda um caboclo sorridente e "buenacho", como dizem os gaúchos, com um violão à tira-colo e fama de bom conhecedor da orizicultura. Foi contratado sem maiores formalidades. Apresentou-se como Silico, mas seu verdadeiro nome nunca se soube.
Ao final da dura jornada diária, depois de um "banho de sanga"*, a peonada reunia-se em volta do fogo de galpão, para prosear e ouvir as canções que Silico cantava, enquanto tocava seu violão. Eram letras fortes, que soavam estranhas aos ouvidos acostumados ao cancioneiro popular gaúcho, num tempo em que o Nativismo ainda não se afirmara. Passar de Teixeirinha ou Gildo de Freitas, os mais conhecidos entre os peões, para o som de um Geraldo Vandré, de um Tayguara, de uma Violeta Parra, de um Víctor Jara ou de um Athaualpa Yupanqui não era assim, de uma hora para outra. Nosso cantor tinha que fazer pausas em suas músicas, para explicar o sentido das letras e traduzir do espanhol para o português (ou para o portunhol, que a maioria sacava bem). Aos poucos, porém, a peonada ia refinando o gosto e o novo som já não lhes soava tão estranho.
Assim, de tertúlia em tertúlia, Silico inteirava-se da situação na fazenda: a jornada de trabalho era de sol a sol; o maior salário era o salário-mínimo. Mas este era para os trabalhadores mais graduados, mais especializados. Os outros, que desempenhavam com habilidade alguma função, ganhavam dois terços do mínimo. E os novatos, ou de funções menos importantes, meio salário. Aos casados, era permitido erguer um casebre em algum canto da fazenda. Em geral, casa de taipa ou madeira, coberta de capim. Alguns, mais antigos, obtinham folhas de zinco, descartadas na reforma de algum galpão, com as quais cobriam suas choupanas. Isso até provocava ciúmes nos que tinham telhado de capim.
Quanto à comida, cada um se virava com a sua. O major permitia que plantassem uma pequena área de milho, mandioca e batata. Uma vez por mês, mandava que se abatessem umas duas ovelhas, que eram repartidas modicamente entre os peões. Carne bovina, só no Natal, quando o fazendeiro ordenava que matassem um boi gordo, separava para si os melhores cortes e deixava que o restante fosse distribuído entre os empregados.
À medida que ganhava a confiança e admiração dos peões, Silico explicava-lhes que aquele regime na fazenda, sem carteira assinada, com salários tão irrisórios, moradias precárias, nenhuma assistência à saúde e sem escola para os filhos dos moradores, semelhava à escravidão. Que observassem como o major enriquecia a olhos-vistos, enquanto eles eram tão miseráveis que a maioria já havia perdido até os dentes, ou os tinham podres. Todos o ouviam atenta e respeitosamente, concordando com seu discurso. Mas alguém, ali, devia apenas fingir concordância, a julgar pelo que vem a seguir.
Capataz (o nome também nunca se lhe soube direito) era um sujeito alto e magro, com cara de poucos amigos, filho de pequeno fazendeiro falido. Quando o pai vendeu a terra para pagar dívidas e, já velho e doente mudou para a cidade, o filho, cujo apelido ganhara do progenitor, quando este ainda acreditava que a fazendinha pudesse prosperar, resolveu ficar no campo, vindo a encontrar trabalho na fazenda do major. Era solteiro, ganhava salário-mínimo inteiro e dormia num quartinho só para ele, diferentemente dos outros solteiros, que dormiam todos no mesmo galpão.
Certo dia, o administrador incumbiu-lhes de uma atividade no campo, entregando a Capataz a liderança da equipe. Entre eles, estavam Silico e mais quatro ou cinco peões. Como era sábado, quando terminassem a tarefa estariam dispensados. Silico levou uma trouxa de roupas sujas, planejando lavá-las quando terminassem a tarefa, num açude que havia no caminho.
Concluído o trabalho, Capataz dispensou os peões e se deteve no local por mais algum tempo. Silico seguiu com os demais, que o acompanharam até o açude, onde ficou sozinho a lavar a roupa.
À noite, os peões estranharam a demora de Silico, que era sempre um dos primeiros a se aproximar do fogo, para prosear, cantar e tomar chimarrão. Como escureceu de todo e ele não apareceu, um dos peões foi até o quarto de Capataz, para perguntar se este sabia de Silico.
- Ele não está no galpão? - perguntou Capataz.
- Não. - disse o peão.
- Pensei que estivesse. Quando passei pelo açude não o vi lá.
No domingo, toda a peonada foi até o açude. Lá chegando, notaram que a trouxa de roupa estava quase intacta. Havia umas poucas peças já lavadas e estendidas na cerca de arame que circundava o açude.
- Será que ele caiu e se afogou? - perguntou um.
- Não acredito - disse outro -. Ele nada muito bem e conhece esse açude melhor que qualquer um de nós.
Resolveram mergulhar e procurar, para não ficarem na dúvida. Mas o açude, apesar de pequeno, era muito profundo, e não conseguiram encontrar nada. Na segunda-feira, comunicaram ao major, que mandou chamar os bombeiros de uma cidade vizinha, já que no município em que se situava a fazenda não os havia.
Pelo meio da tarde, chegaram os bombeiros. Depois de ouvir o relato dos peões e de Capataz, o sargento ordenou aos dois soldados que o acompanhavam que mergulhassem e trouxessem o corpo de Silico.
- O homem está aí, com certeza! - disse o militar.
Quinze minutos depois, os soldados voltavam com o corpo. Pela posição em que estava o cadáver, com a cabeça enterrada na lama, e por outros detalhes relatados pelos soldados, o experiente sargento concluiu que a vítima fora empurrada. O major, que assistira ao resgate do corpo, chamou de lado o graduado e cochichou-lhe algo ao ouvido. Depois, um dos peões jura ter ouvido o major resmungar, de si para si, entre dentes: "Menos um vermelho!...". Mas o pobre moço não soube o que aquilo significava. E tampouco o narrador onisciente o teria sabido, à época.
O corpo de Silico foi levado para o necrotério da santa casa local. Teria sido enterrado como indigente, não fossem os colegas que, nem se sabe como, se cotizaram, compraram o caixão e uma coroa de flores. E velaram o corpo até o dia seguinte, quando foi enterrado. No atestado de óbito, consta morte por afogamento acidental.
Na fazenda, tudo teria continuado como antes, não fosse a lembrança de Silico, com sua carona simpática, seu sorriso de orelha a orelha, sua fala firme e profícua, como boa semente, e seu cantar cristalino, a espalhar sons e cores onde tudo antes parecia tão quieto e cinzento. Na volta ao trabalho, todos entoavam "Plegaria a un labrador", de Victor Jara.
(*) Sanga: ribeiro pequeno e de pouca água. Termo muito utilizado pelos gaúchos de Brasil, Argentina e Uruguai.