Evangelistas apócrifos
O dia começara com o silêncio, e o silêncio estava com ele, e o silêncio era ele. E aos poucos, da escuridão à luz, o sol recomeçava sua cavalgada pela vastidão azul e deserta chicoteando a terra ferida como um capataz feroz. Abaixo de sua inclemente vigília, andejava uma família franzina. O pai ia à frente carregando uma trouxa com tudo que tinham, tudo pouco, até a fé de uma nova vida na cidade grande, longe da seca. Atrás, a mãe carregava o filho nas costas, olhando para os ombros ossudos do esposo João com uma doçura doída.
Um galo cantava ao longe. João mirou o horizonte, que tremia e marejava assim como seus olhos, e lembrou-se de duas coisas – a pregação do padre sobre o trabalho do homem debaixo do sol, e o terço de prata, herança de sua avó. Havia esquecido o terço em casa. Chutou uma pedra. Avisou a mulher do esquecimento e apertou o passo de volta para casa, levantando poeira sob as sandálias de couro. Como podia ter esquecido logo o terço, pendurado na parede do quarto, bem sobre sua cabeça todas as noites? Deu um soco no peito, perguntou a si mesmo se era um sinal de que não amava mais o nazareno. Entrou de novo na casa vazia, e ela lhe parecia um coração vazio. No fundo do coração estava pendurado o terço esquecido, sua fé esquecida, quase abandonada. Apertou o terço entre os dedos calejados e saiu cambaleando. Não tinha chorado quando saiu de casa da primeira vez. Mas agora chorava.
Muitas outras coisas poderiam ser ditas sobre isso, mas elas nunca serão escritas.
E aconteceu que, segundo o costume, um padre queimava incenso na igreja da cidade, e ficou perturbado com a notícia de que a noiva do casamento a seguir casaria grávida.
Não muito longe dali, uma lágrima de alegria escorria do rosto cheio de esperança do jovem noivo. Lucas terminara de escrever seus votos. Faltavam apenas poucas horas para a pródiga cerimônia, para o momento em que ele e Maria, seu amor desde a adolescência, seriam uma só carne, e, a cada minuto que passava, seu coração batia mais forte.
Suou um pouco. Dirigiu até a casa de seu irmão para compartilhar seus sentimentos com ele, a pessoa que tinha merecido ser seu padrinho de casamento. No meio do caminho, Lucas viu um mendigo e, com o coração cheio de amor, parou o carro, pagou-lhe uma refeição, deu-lhe seu casaco, e então retomou seu caminho.
Quando chegou à casa de seu irmão, viu que a porta estava destrancada – por descuido – e entrou. Ouviu de um dos quartos o estouro de vidro se quebrando no chão e ficou apreensivo. Mas foi quando chegou ao quarto do sangue de seu sangue que seu sangue gelou. Ao chão, uma garrafa quebrada – que não era de água, era de vinho – derrubada pelo susto da chegada de Lucas. Sobre a cama estava seu irmão às carícias com uma mulher, com ela, Maria, a noiva prometida que deveria jurar naquela mesma tarde fidelidade até a morte. Os três ficaram em silêncio, como testemunhas das falsas promessas uns dos outros. E foi naquele momento que o acelerado coração de Lucas, de partido, parara no tempo.
Lucas retirou-se da presença deles, como se perdesse o chão, tomado de uma descrença que subia até o céu.
Naquele tempo, conforme estava escrito no bilhete próximo à porta, Marcos deveria preparar o caminho para enviar sua solitária vizinha idosa ao médico, caso precisasse. Mas levar a senhora Ana ao hospital foi o pior de todos os favores impossíveis que o destino lhe cobraria.
Ele fora forte o bastante para derrubar a porta do apartamento ao lado após ouvir o som de panelas caindo e para erguer a senhora cardíaca e acomodá-la em seu carro. Mas só conseguiu dirigir até a esquina do hospital da cidade, onde parou com o carro no meio da rua movimentada. Marcos achou que conseguiria prosseguir após tanto empenho, mas seus olhos turvaram e suas vísceras pareciam se revirar e atraí-lo de volta para o conforto de sua casa. Não podia seguir em frente um metro que fosse. Carros buzinavam atrás dele, mas o corpo de Marcos estava paralisado. Nem os pedidos arfantes da senhora Ana, em desespero, o despertavam.
Naquele momento, mirando a cruz luminosa no topo da capela do hospital adiante, o mundo de Marcos parara novamente. Ele se via mais uma vez perdido como uma voz clamando no deserto, como há dois anos, quando sua esposa chegou ao mesmo hospital para dar à luz seu primeiro filho e ambos morreram durante o trágico parto. Sob a luz daquela mesma capela, suas preces não foram atendidas.
Marcos só queria correr pelo mundo afora e dizer a toda criatura que ninguém estava a salvo, que todos estavam condenados.
Quando Mateus nasceu foi assim, muitos conhecidos o visitaram e diziam para sua mãe que seu nascimento havia sido um milagre e que ele estava destinado a fazer grandes feitos. O menino foi sendo criado com tais promessas, de que ele seria especial. Enquanto crescia sadio, foi tornando-se um atleta, destacando-se nas competições da escola até que foi bem-aventurado em representar seu estado na competição nacional. Treinou por várias semanas. Apesar das dores recentes, treinava com boa-vontade.
Certa manhã, porém, com dores cada vez mais fortes, sentiu suas pernas paralisadas. Foi levado ao médico, fez vários exames, enquanto seu corpo correspondia cada vez menos à sua fé em recuperar-se. Ficou internado. Sua família o acompanhava à procura de respostas. O médico finalmente chegou com os últimos exames, pediu que o jovem levantasse e andasse, mas seus músculos não atendiam mais ao chamado. O médico explicou da doença degenerativa, disse que o jovem nunca mais voltaria a correr. O rosto de Mateus transfigurou-se de decepção, inquieto pelo dia de amanhã, preocupado em testemunhar seu corpo atrofiando a cada dia. A família não acreditava na verdade, insistia que um milagre havia de salvá-lo daquela perdição.
Mateus recordou-se de tudo o que haviam lhe dito desde seu nascimento, e viu que não tinham nenhuma autoridade para dizê-lo, e que não deveria ter guardado aquilo. As pessoas estavam sozinhas e por conta própria neste mundo, até o fim de seus dias.
E ali perto de todos, no cume de um alto monte, um anjo manco assentado em uma pedra, e que mirava as cidades abaixo, puxou sossegado um punhado de tabaco do bolso, ajeitou seu cigarro de palha, acendeu-o, deu uma lenta e longa baforada formando círculos no ar, e, sorrindo torto para aqueles pobres mortais como fazia todo santo dia, gargalhou sobre eles mais uma vez: “Onde está seu Deus agora?”.
O dia começara com o silêncio, e o silêncio estava com ele, e o silêncio era ele. E aos poucos, da escuridão à luz, o sol recomeçava sua cavalgada pela vastidão azul e deserta chicoteando a terra ferida como um capataz feroz. Abaixo de sua inclemente vigília, andejava uma família franzina. O pai ia à frente carregando uma trouxa com tudo que tinham, tudo pouco, até a fé de uma nova vida na cidade grande, longe da seca. Atrás, a mãe carregava o filho nas costas, olhando para os ombros ossudos do esposo João com uma doçura doída.
Um galo cantava ao longe. João mirou o horizonte, que tremia e marejava assim como seus olhos, e lembrou-se de duas coisas – a pregação do padre sobre o trabalho do homem debaixo do sol, e o terço de prata, herança de sua avó. Havia esquecido o terço em casa. Chutou uma pedra. Avisou a mulher do esquecimento e apertou o passo de volta para casa, levantando poeira sob as sandálias de couro. Como podia ter esquecido logo o terço, pendurado na parede do quarto, bem sobre sua cabeça todas as noites? Deu um soco no peito, perguntou a si mesmo se era um sinal de que não amava mais o nazareno. Entrou de novo na casa vazia, e ela lhe parecia um coração vazio. No fundo do coração estava pendurado o terço esquecido, sua fé esquecida, quase abandonada. Apertou o terço entre os dedos calejados e saiu cambaleando. Não tinha chorado quando saiu de casa da primeira vez. Mas agora chorava.
Muitas outras coisas poderiam ser ditas sobre isso, mas elas nunca serão escritas.
E aconteceu que, segundo o costume, um padre queimava incenso na igreja da cidade, e ficou perturbado com a notícia de que a noiva do casamento a seguir casaria grávida.
Não muito longe dali, uma lágrima de alegria escorria do rosto cheio de esperança do jovem noivo. Lucas terminara de escrever seus votos. Faltavam apenas poucas horas para a pródiga cerimônia, para o momento em que ele e Maria, seu amor desde a adolescência, seriam uma só carne, e, a cada minuto que passava, seu coração batia mais forte.
Suou um pouco. Dirigiu até a casa de seu irmão para compartilhar seus sentimentos com ele, a pessoa que tinha merecido ser seu padrinho de casamento. No meio do caminho, Lucas viu um mendigo e, com o coração cheio de amor, parou o carro, pagou-lhe uma refeição, deu-lhe seu casaco, e então retomou seu caminho.
Quando chegou à casa de seu irmão, viu que a porta estava destrancada – por descuido – e entrou. Ouviu de um dos quartos o estouro de vidro se quebrando no chão e ficou apreensivo. Mas foi quando chegou ao quarto do sangue de seu sangue que seu sangue gelou. Ao chão, uma garrafa quebrada – que não era de água, era de vinho – derrubada pelo susto da chegada de Lucas. Sobre a cama estava seu irmão às carícias com uma mulher, com ela, Maria, a noiva prometida que deveria jurar naquela mesma tarde fidelidade até a morte. Os três ficaram em silêncio, como testemunhas das falsas promessas uns dos outros. E foi naquele momento que o acelerado coração de Lucas, de partido, parara no tempo.
Lucas retirou-se da presença deles, como se perdesse o chão, tomado de uma descrença que subia até o céu.
Naquele tempo, conforme estava escrito no bilhete próximo à porta, Marcos deveria preparar o caminho para enviar sua solitária vizinha idosa ao médico, caso precisasse. Mas levar a senhora Ana ao hospital foi o pior de todos os favores impossíveis que o destino lhe cobraria.
Ele fora forte o bastante para derrubar a porta do apartamento ao lado após ouvir o som de panelas caindo e para erguer a senhora cardíaca e acomodá-la em seu carro. Mas só conseguiu dirigir até a esquina do hospital da cidade, onde parou com o carro no meio da rua movimentada. Marcos achou que conseguiria prosseguir após tanto empenho, mas seus olhos turvaram e suas vísceras pareciam se revirar e atraí-lo de volta para o conforto de sua casa. Não podia seguir em frente um metro que fosse. Carros buzinavam atrás dele, mas o corpo de Marcos estava paralisado. Nem os pedidos arfantes da senhora Ana, em desespero, o despertavam.
Naquele momento, mirando a cruz luminosa no topo da capela do hospital adiante, o mundo de Marcos parara novamente. Ele se via mais uma vez perdido como uma voz clamando no deserto, como há dois anos, quando sua esposa chegou ao mesmo hospital para dar à luz seu primeiro filho e ambos morreram durante o trágico parto. Sob a luz daquela mesma capela, suas preces não foram atendidas.
Marcos só queria correr pelo mundo afora e dizer a toda criatura que ninguém estava a salvo, que todos estavam condenados.
Quando Mateus nasceu foi assim, muitos conhecidos o visitaram e diziam para sua mãe que seu nascimento havia sido um milagre e que ele estava destinado a fazer grandes feitos. O menino foi sendo criado com tais promessas, de que ele seria especial. Enquanto crescia sadio, foi tornando-se um atleta, destacando-se nas competições da escola até que foi bem-aventurado em representar seu estado na competição nacional. Treinou por várias semanas. Apesar das dores recentes, treinava com boa-vontade.
Certa manhã, porém, com dores cada vez mais fortes, sentiu suas pernas paralisadas. Foi levado ao médico, fez vários exames, enquanto seu corpo correspondia cada vez menos à sua fé em recuperar-se. Ficou internado. Sua família o acompanhava à procura de respostas. O médico finalmente chegou com os últimos exames, pediu que o jovem levantasse e andasse, mas seus músculos não atendiam mais ao chamado. O médico explicou da doença degenerativa, disse que o jovem nunca mais voltaria a correr. O rosto de Mateus transfigurou-se de decepção, inquieto pelo dia de amanhã, preocupado em testemunhar seu corpo atrofiando a cada dia. A família não acreditava na verdade, insistia que um milagre havia de salvá-lo daquela perdição.
Mateus recordou-se de tudo o que haviam lhe dito desde seu nascimento, e viu que não tinham nenhuma autoridade para dizê-lo, e que não deveria ter guardado aquilo. As pessoas estavam sozinhas e por conta própria neste mundo, até o fim de seus dias.
E ali perto de todos, no cume de um alto monte, um anjo manco assentado em uma pedra, e que mirava as cidades abaixo, puxou sossegado um punhado de tabaco do bolso, ajeitou seu cigarro de palha, acendeu-o, deu uma lenta e longa baforada formando círculos no ar, e, sorrindo torto para aqueles pobres mortais como fazia todo santo dia, gargalhou sobre eles mais uma vez: “Onde está seu Deus agora?”.