1089-BONECAS DE TRAPOS
Depois de lavar a louça do jantar e limpar toda a cozinha, ela entrava no seu quartinho de dormir, passava um pente de quatro dentes pela carapinha branca, arrumava o atrás da cabeça e voltava a envolver a cabeça com um pano muito branco.
Era uma rotina que só se interrompia aos sábados e domingos. Aos sábados porque invariavelmente dona Eunice, a patroa, tinha convidados para o jantar e então a trabalheira se estendia até dez, onze horas. E aos domingos, devido á assistência ás Santa Missa, que ela, nhá Nena, não perdia de modo algum.
Era encarregada apenas de fazer as refeições e manter a cozinha limpa e a despensa em ordem; outras duas empregadas cuidavam da faxina da casa e da lavação de roupas. Alem do jardineiro, que vinha três vezes por semana e era calado como quê.
A residência do doutor Henrique Salamego e da esposa dona Eunice situada na principal avenida da cidade de Vento Leve era imponente sem ser muito grande.
Sobrado com imponente entrada, e sacada no segundo andar, de onde Henrique aparecia todas as manhãs, como um adorador do sol nascente para receber no rosto os primeiros raios de calor e de luz do astro-rei.
À frente havia um jardim bem cuidado, separado da calçada por uma grade de ferro. Na entrada, o portão era afastado e uma pequena área coberta protegia quem tocasse a campainha e esperava ser atendido. Havia ainda um banco de granito e uma boa lâmpada elétrica, para que a espera fosse confortável e segura, de dia ou de noite.
Mas para que o apronto de nhá Nena, se ela não tinha para onde ir, pois de há muito morava na casa dos patrões e não tinha família – nem marido, filhos ou netos.
Alisou a saia, lavou as mãos, pegou uma sacola cheia de pedaços de panos, uma caixi9nha de madeira com tesoura, agulha e linha, e saiu pela porta dos fundos, rumo à entrada do palacete.
Abriu o portão, adiantou-se até o banco, sentou-se e, sob a claridade forte da lâmpada, retirou sacola os apetrechos de costura e começou a manuseá-los.
Costurando?
Alguns garotos e meninas do quarteirão, que brincavam na calçada, jogando peteca ou de pique de esconder, aproximaram-se da diligente mulher, cumprimentando-a, todos ao mesmo tempo quase em coro:
— Boa noite, nhá Nena!
— Boa noite, queridinhos.
— A senhora vai fazer outra boneca?
— Vou sim. Vou acabar aquela de saia vermelha que mostrei prá vocês ontem. Tão lembrados?
— Me dá ela prá mim — Pedia Lilita, garotinha vivaz e alegre.
— Ara, Lilita, semana passada já lhe dei uma de sapatinho verde. Cê esqueceu? Esta aqui vai para... para... Ara, quando eu acabar, eu falo.
Certa noite, Armandinho fez uma pergunta de difícil resposta:
— Quantos anos a senhora tem, nhá Nena?
Ela não respondeu de imediato. Ficou pensando, um sorriso vago, as mãos manobrando com vagar a agulha, ponto prá ca, ponto pra lá.
Armandinho esperou enquanto os outros companheirinhos correram para brincar. Depois de alguns minutos, ela respondeu:
— Armandinho (ela sabia o nome de todas as crianças das redondezas), cê já ouviu falar que “negro quando pinta tem mais de cento e trinta”?
— É, já ouvi sim, mas não sei não o que significa.
— Pois olhe!
E dramaticamente, desamarrou o lenço da cabeça e exibiu os cabelos brancos.
— Significa que os negros quando ficam com os cabelos brancos, têm pelo menos cento e trinta anos.
— Nossa, a senhora tem mais de cem anos, nhá Nena.
— Não. Num sei quantos anos tenho.
— Ué, como é que pode?
— Senta aqui que vou te contar uma história.
Mais do que depressa, o garoto sentou-se ao lado de nhá Nena.
“Oba! Uma história! Que bom!” – pensou ele.
— Houve um tempo em que os pretos eram escravos dos brancos. Minha mãe era escrava em uma fazenda de café lá pelos cafundós, um lugar que nem me lembro do nome. Trabalhava muito, de sol a sol, e de vez em quando era chicoteada pelo feitor. Não sei por quê. Não sabia quem era meu pai porque na senzala, onde ficavam os escravos, o lugar de dormir era um só pros homens e para as mulheres.
Parou um pouco de fazer pontos nos paninhos coloridos. Quando voltou a pontear, prosseguiu na sua história:
— Um dia, o feitor chegou dizendo que a gente não era mais escravo. Nois nem entendemos direito, foi preciso ele explicar que a partir daquele dia, não tinha mais chicote nem tronco do castigo. Falou também que a gente não pertencia ao patrão, e que podia ir prá onde quisesse. Os homens fortes que quisessem podiam ficar, iam receber paga pelo trabalho. Mas os velhos, as mulheres e as crianças tinham que ir embora. Num iam receber mais nem comida nem roupa e não podia mais ficar na fazenda. Tinha que sair, ir embora.
— Saimo uma leva de preto, mulheres, velhos que não podiam mais trabalhar, crianças, muitas crianças. Alguns homens também saíram, com as companheiras e os filhos. Caminhando pela estrada, sem saber onde parar.
— A gente foi prá cidade. Não tinha nada: só a roupa do corpo. Passamo fome, frio, muita necessidade. Algumas pessoas e famílias caridosas ajudaram a gente. Minha mãe foi trabalhar como lavadeira de roupa dos presos da cadeia. Mais tarde, foi ser cozinheira numa outra fazenda, de uns alemães. Eu cresci ali, aprendi a cozinhar, e virei uma boa cozinheira. Então arranjei emprego com a mãe de Dona Eunice. Ela era mocinha, naquela época. Quando casou com o doutor Henrique, me trouxe prá trabalhar neste palacete, aonde veio morar.
— Deve fazer muito tempo, né, nhá Nena?
— Xíiii. Nem me lembro mais quantos anos fais.
E calou-se, voltando ao seu trabalho manual de fazer bonecas de trapo.
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— Nice, manda a nhá Nena parar com essa mania de ficar assentada no banco da entrada, fazendo bonecas de trapo.
— Ora, Henrique, que mal faz? Ela só vai pra lá depois de terminado todo o serviço da cozinha. É sua única distração.
— Não fica bem uma preta fazendo bonecas de pano na porta de entrada de um Juiz de Direito.
Era um assunto que ia e vinha, mas ficava por isso mesmo, e nhá Nena continuava a fazer e distribuir bonecas e bonecos (tinha também os bonequinhos caipiras, muito feios, aliás).
É verdade que nos últimos tempos, dera em cochilar no banco, e a feitura de bonecas demorava cada vez mais.
As crianças costumavam acordá-la de seus cochilos:
— Nhá Nena! Acorda!
— Tá na hora de dormir, vó!
Ela saia assustada de seus cochilos, recolhia suas coisas, abria o portão e voltava para a casa,
Uma tarde, ao preparar o jantar, nhá Nena derramou sem querer água fervendo sobre a mão esquerda. Foi socorrida por Marilda, a copeira, e insistiu em terminar o jantar mesmo com a mão enrolada em panos.
— Tou ficando muito boba mesmo! Onde já se viu? Deixar a chaleira escorrer água quente na minha mão!
À noite, não levou a sacola de panos e linhas. Quando se sentou no banco, foi dizendo aos garotos e garotas que por ali brincavam:
— Num tou valendo nada. Hoje deixei a água fervendo da chaleira queimar minha mão. Não vou poder fazer mais bonecas por algum tempo.
— Vou só ficar olhando prá você correrem de lá pá cá e de cá prá lãs. Olha, se eu cochilar, me acorde para eu voltar pro meu quartinho.
E lá ficou ela observando meninos e meninas brincando. Estavam jogando peteca naquela noite.
A vista foi turvando e ela perdeu a noção da realidade. Sentada estava, sentada ficou. Até que Josué, um dos garotos mais novos, chegou perto de nhá Nena, observou-a atentamente, pegou na sua mão e disse:
— Nhá Nena! Nhá Nena! Acorde! Tá na hora de dormir na sua cama.
Gritou para os amiguinhos:
— Ela não quer acordar!
Chegaram Armandinho e Moisés. Olham a velha senhora, dormindo, a cabeça abaixada, o queixo encostado no peito. Nenhum som de respiração, nada.
Puxou a mão. O corpo tombou de lado, sobre o banco.
— Xiiiiii. Ela morreu.
Moisés fugiu do local. Armandinho ficou atarantado e com muito medo.
Enfim, tomou uma decisão.
Apertou o botão da campainha e saiu correndo.
ANTONIO ROQUE GOBBO
Belo Horizonte, 11 de outubro de 2018.
Conto # 1089 da série INFINITAS HISTÓRIAS