Atômico
A madrugada derramava sua garoa fina e irritante sobre a cabeça quase careca de Ricardo, que caminhava pela molhada calçada que circunda o prédio no qual ele faz bico como segurança noturno. O homem de meia-idade sempre rezava antes de começar seu turno de trabalho para ganhar cinquenta reais no início do outro dia, quando era rendido pelo segurança da manhã, o Clemente.
Trabalhar de noite tem algumas vantagens, exceto quando o inverno é rigoroso, daí faz-se inquestionável a necessidade de rondar o prédio coberto com camadas de roupas grossas para não perder o calor corporal. Algo que particularmente Ricardo não gosta, primeiro porque é recém-chegado à São Paulo, segundo que no Norte o calor é feroz o ano todo, sem tréguas. Nesta madrugada especificamente, Ricardo não estava tão preparado para o frio, já que aprendera a verificar o clima antes de sair de casa, logo depois de dá um beijo na esposa e no filho de dois anos.
Como dizia, a garoa descia do céu e lá pelas 3h45 ela já formava poças d’água. Ricardo se espremia na marquise do prédio para não receber tanta friagem na cara, ele temia desenvolver alguma virose por causa da exposição ao frio. O prédio que ele vigiava é um desses quase arranha-céu de São Paulo em que muitos ricos pagam centenas de milhares para viver acima da população miserável que caminha pelas ruas movimentadas. Lá pelas 4h15, um Camaro amarelo parou em frente à portaria, sua porta do carona se abriu saindo de lá uma bela moça, aparentemente com 25 anos de idade, Ricardo apenas observava, irrequieto, a movimentação da madrugada. De dentro do carro também saiu um rapaz forte, apressadamente.
Os dois pararam na frente do segurança e discutiam alguma bobagem sobre o relacionamento difícil que estavam vivendo, Ricardo estava lá, invisível e indiferente. O jovem rapaz agarrava a menina pelos braços, ela gritava e xingava. Depois de muitas trocas de acusações e uma possibilidade de reconciliação, os dois decidiram subir. Quem diria, eram moradores. Os gritinhos da discussão deram lugar ao silêncio tumular do fim de noite, que trouxe consigo um velho louco que arrastava a perna e gritava alguma coisa sobre o fim do mundo. Ricardo naquele instante dava pequenos goles em seu café feito às 16h00 do dia anterior pela sua esposa, Carol. A garrafa térmica já não mantinha a temperatura quente, e o café quente estava terrivelmente frio.
Quando já não se ouvia o velho gritando e Ricardo se animava porque o raiar do dia já tocava o asfalto e as pontas dos prédios, ele sabia que sua vigília estava terminando. Quando o relógio marcou 6h30 da manhã, a rua vazia durante a noite já estava repleta de gente se deslocando para seus postos de trabalho, uma mistura de cores e perfumes anunciava que um novo dia começara. Ricardo já enxergava Clemente quando dois corpos despencaram sobre o Camaro amarelo estacionado, amassando a lataria perfeita do potente automóvel e logo se formou uma multidão ao redor dos corpos chocados. Clemente ficou surpreso com a situação que acabara de acontecer, Ricardo ficara chateado, afinal, seu parceiro esqueceu seu pagamento.