Relógio D’amor:
Na sua impossível maneira de ser, quase desumana maneira de ser, escondia dores, sóis, girassóis e estrelas cadentes, algumas decadentes estrelas lembranças lhe apunhalavam firmemente entre as métricas e as virgulas. Escondia a face, a faca, o fio da navalha na voz e a sombra na luz da memória contida, escondida no canto mais empoeirado do baú de suas lamentações. Pregava pregos, pregava espelhos, não pregava palavras. Nenhuma palavra pregada. As palavras viviam soltas, como animais in-domésticos pelo quintal, pelo espelho pregado, pelo canteiro de obras, nas obras inacabadas, dos livros não escritos, rascunhados, rasurados, amarelados. De amarelo gostava do sol quando se punha, este logo traria a noite, traria silêncios, traria uns tragos para a secura da boca indivisível e permanente, traria as benditas estrelas cadentes, riscos de fogo pelo céu, cortando o céu, riscando o negro, fazendo faísca nas palavras ondulantes.
Na sua impossível maneira de ser, era quase possível ser e não ser amante e errante nuns passos mais tortos que os outros, dar uns passos a mais, uns tragos a menos, uns riscos mais adiante nas palavras que gritantes ecoavam pelas horas infinitas. Escondia retratos, relógios, poemas, areias do tempo que voavam nos vendavais. Esquadros mal esquadrados desenhavam o certo no incerto nas horas da dor. Relógios d’amor nas estrofes sem rimas. Traços que não construíam versos no tempo das chamas. Não contava a idade, não des-embranquecia os cabelos, tampouco afagava as rugas dos anos na maquilagem das alegrias esconsas. Contava causos, piadas, moedas. Cantava velhas canções, sem talento, sem ritmo, sem pretensão alguma. Apenas cantava para passar o tempo, para matar o tempo, para enganar o tempo que lhe enganava.
Na sua impossível maneira de ser, quase mundana maneira de ser, colecionava verbos, regras, gramática e nenhuma matemática. Colecionava ventos em seus límpidos cristais, relógios quebrados, as horas paradas, a boca congelada e passarada dos quintais. Colecionava sons, uns tons e mais de mil ancestrais. Des-colecionava amores, rancores, pedras e pátrias. Cintilava pela vida sem nenhuma prata na carteira. Na carteira só abrigava uma velha e polida fotografia, de antes da vida e para além da morte. Memorizada a imagem no arquivo da memória arranhada, nada mais era importante. Saudava bandeiras, saudava guerreiros e as chinas à beira do cais. Tentava ser elegante, terminara por ser displicente, quase sempre. Esquecia aniversários, promessas, compromissos, contas a pagar, amores a esquecer, dores a se desfazer. Acumulava dores, sentia dores, vivia das dores e de tanto ter dores acabara por se alimentar de cada uma delas.
Na sua impossível maneira de ser, ultrapassada maneira de ser, recortava jornais, revistas, retalhos, imagens, amor. Retalhava a dor. Espalhava-a pela casa, pelas horas, pelos cantos dos olhos, na poeira da alma, nos entulhos dos seus passos, nos escombros da sua vida. Acumulava tralhas, sujeiras nas calhas, nos vidros das mãos, nas madeiras dos seus sonhos maciços. Engavetava filmes, romances, pileques e as rolhas dos vinhos baratos, comprados na promoção de um dia qualquer, em um tempo qualquer, sem qualquer preocupação. Mentia para si, mentia para os outros, mentia para o gato, quebrava os pratos, pintava alguns quadros, estragava outros tantos só para remediar a dor. Só para não saber as horas. Não olhava para trás, não olhava para a frente, não olhava nos relógios que marcavam o tempo e acumulavam os anos e alimentavam a dor. Olhava ao atravessar a rua, mecanicamente, duas vezes para cada lado, sem enxergar cousa alguma. Mecanicamente desligava o despertador. Mecanicamente trabalhava, vivia, se importava, se banhava, almoçava, reclamava, agradecia, elogiava, enaltecia, pincelava, escrevia, lia, ria, ia para algum lugar e vinha de lugar algum.
Na sua impossível maneira de ser, quase maldita maneira de ser, amava alguma coisa, alguma gente, alguma flor ou palavra descrente de um jeito que quase sempre lhe trazia alguma dor. Maltratava as palavras, maltratava as teclas da máquina datilográfica, maltratava as canetas azuis, maltratava seu corpo inerte, imóvel, indolor. Maltratava cada poro, cada nervo, cada músculo, cada osso, cada órgão, cada refrão. Tinha as rimas todas livres, esvoaçantes, intrépidas, engenhosas e terminadas. Tinha sede de poesia, sede de água do mar, sede de paixão interminável e impossível. Tinha sede de viver em seu implícito desejo pela morte. Tinha relógios espalhados pela casa a medir o tempo dos anos, dos séculos, dos milênios vivos dentro de si. Não admirava os relógios, mas ouvia estridentemente o tic-tac das horas do seu tempo.
Na sua impossível maneira de ser, quase humana maneira de ser, nas horas da dor, no relógio d’amor, sê poesia e nada mais.
(Texto: Relógio D'amor, de Léa Ferro - Publicado originalmente na antologia "Emoções Poéticas III", pela Futurama Editora, SP, ano de 2016).
Na sua impossível maneira de ser, quase desumana maneira de ser, escondia dores, sóis, girassóis e estrelas cadentes, algumas decadentes estrelas lembranças lhe apunhalavam firmemente entre as métricas e as virgulas. Escondia a face, a faca, o fio da navalha na voz e a sombra na luz da memória contida, escondida no canto mais empoeirado do baú de suas lamentações. Pregava pregos, pregava espelhos, não pregava palavras. Nenhuma palavra pregada. As palavras viviam soltas, como animais in-domésticos pelo quintal, pelo espelho pregado, pelo canteiro de obras, nas obras inacabadas, dos livros não escritos, rascunhados, rasurados, amarelados. De amarelo gostava do sol quando se punha, este logo traria a noite, traria silêncios, traria uns tragos para a secura da boca indivisível e permanente, traria as benditas estrelas cadentes, riscos de fogo pelo céu, cortando o céu, riscando o negro, fazendo faísca nas palavras ondulantes.
Na sua impossível maneira de ser, era quase possível ser e não ser amante e errante nuns passos mais tortos que os outros, dar uns passos a mais, uns tragos a menos, uns riscos mais adiante nas palavras que gritantes ecoavam pelas horas infinitas. Escondia retratos, relógios, poemas, areias do tempo que voavam nos vendavais. Esquadros mal esquadrados desenhavam o certo no incerto nas horas da dor. Relógios d’amor nas estrofes sem rimas. Traços que não construíam versos no tempo das chamas. Não contava a idade, não des-embranquecia os cabelos, tampouco afagava as rugas dos anos na maquilagem das alegrias esconsas. Contava causos, piadas, moedas. Cantava velhas canções, sem talento, sem ritmo, sem pretensão alguma. Apenas cantava para passar o tempo, para matar o tempo, para enganar o tempo que lhe enganava.
Na sua impossível maneira de ser, quase mundana maneira de ser, colecionava verbos, regras, gramática e nenhuma matemática. Colecionava ventos em seus límpidos cristais, relógios quebrados, as horas paradas, a boca congelada e passarada dos quintais. Colecionava sons, uns tons e mais de mil ancestrais. Des-colecionava amores, rancores, pedras e pátrias. Cintilava pela vida sem nenhuma prata na carteira. Na carteira só abrigava uma velha e polida fotografia, de antes da vida e para além da morte. Memorizada a imagem no arquivo da memória arranhada, nada mais era importante. Saudava bandeiras, saudava guerreiros e as chinas à beira do cais. Tentava ser elegante, terminara por ser displicente, quase sempre. Esquecia aniversários, promessas, compromissos, contas a pagar, amores a esquecer, dores a se desfazer. Acumulava dores, sentia dores, vivia das dores e de tanto ter dores acabara por se alimentar de cada uma delas.
Na sua impossível maneira de ser, ultrapassada maneira de ser, recortava jornais, revistas, retalhos, imagens, amor. Retalhava a dor. Espalhava-a pela casa, pelas horas, pelos cantos dos olhos, na poeira da alma, nos entulhos dos seus passos, nos escombros da sua vida. Acumulava tralhas, sujeiras nas calhas, nos vidros das mãos, nas madeiras dos seus sonhos maciços. Engavetava filmes, romances, pileques e as rolhas dos vinhos baratos, comprados na promoção de um dia qualquer, em um tempo qualquer, sem qualquer preocupação. Mentia para si, mentia para os outros, mentia para o gato, quebrava os pratos, pintava alguns quadros, estragava outros tantos só para remediar a dor. Só para não saber as horas. Não olhava para trás, não olhava para a frente, não olhava nos relógios que marcavam o tempo e acumulavam os anos e alimentavam a dor. Olhava ao atravessar a rua, mecanicamente, duas vezes para cada lado, sem enxergar cousa alguma. Mecanicamente desligava o despertador. Mecanicamente trabalhava, vivia, se importava, se banhava, almoçava, reclamava, agradecia, elogiava, enaltecia, pincelava, escrevia, lia, ria, ia para algum lugar e vinha de lugar algum.
Na sua impossível maneira de ser, quase maldita maneira de ser, amava alguma coisa, alguma gente, alguma flor ou palavra descrente de um jeito que quase sempre lhe trazia alguma dor. Maltratava as palavras, maltratava as teclas da máquina datilográfica, maltratava as canetas azuis, maltratava seu corpo inerte, imóvel, indolor. Maltratava cada poro, cada nervo, cada músculo, cada osso, cada órgão, cada refrão. Tinha as rimas todas livres, esvoaçantes, intrépidas, engenhosas e terminadas. Tinha sede de poesia, sede de água do mar, sede de paixão interminável e impossível. Tinha sede de viver em seu implícito desejo pela morte. Tinha relógios espalhados pela casa a medir o tempo dos anos, dos séculos, dos milênios vivos dentro de si. Não admirava os relógios, mas ouvia estridentemente o tic-tac das horas do seu tempo.
Na sua impossível maneira de ser, quase humana maneira de ser, nas horas da dor, no relógio d’amor, sê poesia e nada mais.
(Texto: Relógio D'amor, de Léa Ferro - Publicado originalmente na antologia "Emoções Poéticas III", pela Futurama Editora, SP, ano de 2016).