Encontro às escuras com um sol da noite

A garota aceitou o convite para se encontrar com uma pessoa. Entre alguns envios de recados e trocas de números, ela o ignorou achando ser apenas alvo de umas chacotas on line feitas por pequenos trolls de aplicativos de encontros. Mas ao longo de uma semana os diálogos pareciam fluir como um rio pós chuvas de primavera. Parecia que muito tempo havia se passado para tudo, mas pouco havia ocorrido de verdade. Para ela parecia que o tempo estava correndo rápido demais e que cada dia que passava havia menos a ser aproveitado. Havia a estranheza de se sentir tão a vontade de ir a um encontro às escuras e a mesma repulsa de ser um erro fazer isso. Talvez fosse só mais um joguinho em que as pessoas se prezam fazer em prol da sexualidade. E ela estava se prezando a participar desse show.

Por muitos muitos momentos olhou a tela do celular para refletir e aceitou o convite para um encontro (feito pela segunda ou terceira vez por ele). Jogou para o universo dizer se estava pensando certo ou errado. E isso foi respondido com um céu nublado na manhã do encontro e uma imensa tempestade próxima da hora de sair. Perfeito para se negar a sair da rede armada no meio da sala de sua casa.

Como se pedir mais recados para o céu adiantasse, foi para um banho quente que animou, as tranças feitas nos cabelos deram um ar legal àquela cara de duvida que olhava para o espelho. Negar que queria sair só negaria o que desejava. O céu se abriu no momento de por os pés para fora de casa e ela foi com a certeza de que tudo poderia dar errado, (e até ai estava tudo bem). Repetiu essa frase muitas vezes pelo caminho.

Em determinado momento da rápida viagem de trem que fazia ela passou a observar o dia la fora do transporte: o céu estava pintado de nuvens negras vistas pelos vidros salpicados de gotas furiosas da chuva que caia. em segundos um imenso e inesperado sol dourado brilhou de forma forte entre os prédios em sua despedia da abobada celeste. Aquela cena não podia deixar de arrancar um sorriso dela. Era uma boa alusão pensar que surgiu a luz do sol no fim de qualquer sombra que havia dentro dela. Algo bom estava por vir de uma forma ou de outra. A alma se aquietou olhando o por do sol entre chuva ( seria um casamento de viúva?).

Esperar por alguns minutos no ponto de encontro deixou uma pequena duvida sobre ser tudo um jogo de marcar e não aparecer. Será que passa isso na mente de todos? Pegar o celular (que nunca foi companheiro dela) naquele momento deu um conforto transitório. Afinal ali, naquele lufar ela parecia uma pessoa esperando um carro de aplicativos de viagens. Pela primeira vez olhou ao redor para se comparar com as pessoas que estavam ali se sacudindo para se livrarem da chuva. Sorriu sem medo de encarar ninguém. No ouvido, o fone desenhava as notas das guitarras e baixo acústicos de uma musica, acalmando-a com uma melodia que combinava com o momento.

“This day will die tonight and there ain't no exception

We shouldn't wait for nothing to wait for

Love me in this fable, babe, my heart is in your hand

Our time is waiting right outside your door

And maybe tomorrow is a better day

I do not deal the cards and I play a lousy hand

I celebrate no victories and my promises are sand

Against all this I contrast you, when all is lost the war is through

Hey angel, dare the winds now we can fly”

(Maybe Tomorrow Is a Better Day - Poets Of The Fall)

Quando a melodia foi interrompida por uma ligação com o nome identificado a musica nos ouvidos passou a ter um tom mais leve. O significado de tudo estava construído para ela. Siga em frente e se jogue.

Algumas gotas de chuva caiam pesadas e com preguiça lambendo os fios dos postes próximos do carro que ela avistou ser o do encontro. Ativou o aplicativo de localização e enviou para um amigo de confiança e entrou sem evitar a chuva. A sensação de entrar no veiculo de alguém estranho ao qual não se conhece as manias (e ainda molhada) não era boa. Tudo parecia uma junção de elementos estranhos em toda equação do dia, um encontro às escuras em uma noite escura de chuva onde os postes oscilavam e se apagavam ao longo do caminho. Até os sinais de trânsito estavam piscantes ou sem funcionar. O mundo estava se desligando por alguns momentos para ela passar.

Encarou o motorista que dirigia sabendo certo onde iria e houve um bom sorriso aberto de recepção, o que foi acalentador junto com o abraço real que ritmou as batidas do coração que estava procurando um conforto descompassado de primeiro encontro. Parados em um cruzamento ela olhou para um poste que se apagava e, em sua memoria, reavivou a imagem do sol como um flash dos relâmpagos que corriam pelo céu. Gostoso seria a descrição e a palavra certa a ser usada no momento. Foram quinze minutos em um carro em meio ao caos de São Paulo sem semáforos e piadas foram feitas. Foi gostoso a sensação ter um abraço livre, sem travas e uma voz calma e sonora aos ouvidos ao descer do automóvel.

Não querer controlar onde as coisas podem nos levar deixam as situações bem inusitadas e, naquele momento, ela se rendeu a ser expectadora de tudo que seria mostrado ali no palco imaginário de se conhecer alguém. Mesmo participando do dialogo, o ouvir foi predominante pela noite toda. Existem almas que desejam exibir o que possuem de joias e há as que desejam exibir o que possuem de profundidade de conhecimento e experiências. Os olhos claros dele sem definição de cor pelas luzes amareladas da noite estavam abertos para um mergulho profundo junto com o som de muitas palavras sendo ditas. Hora as pupilas dilatavam e hora se contraiam mostrando um recuo energético, talvez. Houve um exagero de ambos ao mostrar ao falar. Mas tudo foi tão espontâneo que nem se notou desconforto. A profundidade do mergulho em uma alma nova era o que mais lhes importava. Ela media a temperatura da água do diálogo travado ouvindo aquela voz calma e cheia de sotaque paulistas da zona onde morava. Ela tentava perceber se havia corredeira perigosa de pensamentos ou se o fluido daquela vida descrita entre gestos e verbos estava parado. Ao longo de todo encontro ela tentou desenhar na mente todo assunto tratado de musica, experiencias com comida e viagens, analisando se aquilo a puxava por correntezas mais violentas por baixo de uma superfície calma.

Aquele homem era uma pedra em meio a correntezas incertas de um rio que esconde corredeiras perigosas. A melodia da musica que tocava no restaurante, as descrições de sonhos e de momentos de vida entoados pela voz calma dele trazia uma sensação boa no peito de saudade de algo que não existia até aquele momento. Entre amenidades de vida, existiam caminhos muito tênues de verdades e sonhos. Haviam brechas para se entrar naquele rio corrente e opções que poderiam lhe causar danos.

Ela se lembrou de uns dizeres de um livro ao qual não sabia nome ou autor, mas que pregavam o amor e delicadeza ao adentrar o espaço do outro. Seja ele físico ou mental. E ao longo de todo momento trocado os ouvidos se fizeram presentes e talvez as palavras roucas pela alergia sofrida ao longo da semana tenham soado ásperas. Tudo que importava era ouvir... e curtir a forma generosa que o outro se expunha para ela, de forma cativa e exibicionista. De certo era uma forma dela adentrar ao mundo que ele criava para mostrar que poderia ser bem vinda, pelo menos por aqueles instantes de janela do tempo de um possível encontro só carnal.

Observando atentamente aos sonhos dele e algumas palavras mais nervosas ela notou que havia algo profundamente ingênuo em sua forma de agir, ingenuidade cativa de uma corrente de rio que obedece ordens do mar, maré essa em que ela poderia se afogar se não soubesse onde nadar no que era exibido junto com a sensualidade escondida em duvida. O que se tornavam bons obstáculos de conversa se rompiam diante das palavras trocadas ou piadas mal feitas que até caiam bem, talvez para ela que as fazia.

Existia o medo de se afogar estando ainda com os pés na beirada daquele rio escuro e barulhento da noite. A imagem que veio na memoria do sol atrás das nuvens negras a assegurou que estava tudo bem. A sensação boa a fez pular a mureta de segurança de uma sacada para sentir que estava pulando uma etapa dolorosa da vida e passando por uma mais leve e sem julgamento de si mesma. Se sentiu bem olhando uma parte arterial das ruas movimentadas onde estava correndo por baixo do olhar dela. Já não estava tudo tão escuro e tão silencioso em sua cabeça. E o som da melodia ficou na mente.

Musica possui um magnetismo sensual tão importante que creio que as pessoas se esqueçam. A chuva caindo é musica. As pedras molhadas das paredes de alguns locais soam como pequenos sinos com as gotas correndo por elas. O coração batendo em um ritmo que só ele compreende é tambor de fluxo de vida compassada.

A proposta era de se dar a chance de conhecer a si mesma e de ver pessoas. Abrir uma janelinha , escolher ou ser escolhido... crendo que tentar se relacionar não é só isso; mas pra maioria das pessoas talvez seja o primeiro passo. Naquele momento foi um passo, não para procurar bandagens que curem feridas ou quebras de personalidade, foi um passo para se ver em um espelho, nua de si mesma. Espaço para se reencontrar como mulher que está em um mundo ao qual ela se fechou por décadas. Fechar os olhos, sentir o vento e respirar olhando as luzes dos carros correndo nas ruas abaixo fez um pouco da mente esvaziar e dar a chance de um toque de rosto fazer muita diferença. O desbloqueio veio com o toque de mãos, com o roçar de rostos, de narizes, de lábios que quase não se encostaram, como uma dança sem regras, apenas de sensações a serem descobertas. Ela se sentiu disposta ao mundo e olhando todas as possibilidades e ouvindo o que havia para aproveitar naquele momento que ela em breve saberia que acabaria.

Em outro momento, em outro ambiente, ele mostrou que tinha habilidades com a musica, tocando docemente uma flauta ancestral japonesa sem a menor vergonha de se exibir. A cena transmitiu um poder imenso a figura masculina que ali se mostrou presente. Generosidade e coragem foi a palavra dada ao momento. Se mostrar apto as habilidades que falou ter, mas sem perder o tom de curiosidade em ser exibir.

Cada nota da flauta e cada toque da percussão exótica tocada foi um reverberar do som de todas as palavras que poderiam ser ouvidas por almas afins. As notas se esbarravam no corpo de forma sedosa. Cada qual em seu momento. O timbre das sílabas que saiam de sua boca, davam uma estranheza de não saber o que ela fazia ali. Ao mesmo tempo que nascia um bem-estar latente apoderando-se de como se um organismo invadisse a mente curiosa dela, escorrendo pelos poros, pelos abraços, pelo lábios, pelas mucosas, deixando com que o corpo mostrasse seu desejo. A mente lutou contra tudo por um certo tempo até o corpo ceder a curiosidade e as sensações despertas que desejavam ser tocadas além do cérebro e ouvidos.

Sentia-se invadida por uma espécie de leveza delirante em contato com aqueles olhos de farol e sorriso que ilumina um cômodo apagado. Semelhante àquela que os estados febris costumam provocar. Momento de Experimentação de seu corpo. Experimentar suas inúmeras possibilidades num caleidoscópio de cores, formas, aromas. Sentia a dureza desafiadora das responsabilidades assumidas e estimuladas por suas ações ate agora.

Percebia as escolhas de olhar e posições sendo feitas em impulsos, as emoções manifestando-se na indizível doçura de um ato consciente dela mesma. Havia a nuance de corpos inconsequentes diante do que faziam. Primeiro contato físico sempre parece estranho e elétrico, tremulo, sem ritmo de si e adocicado demais. Mas havia sua língua, suas mãos e seus olhares de farol observadores de si e dela. Sentir sensualmente o que desejava naquele momento de sua redescoberta na cama de um estranho era uma inacabada aprendizagem sobre si mesma. Mas ela se mostra pouco saber sobre ele nestes instantes íntimos e novos, desejo sempre maior (e maior não leva a bons caminhos iniciais....) mas o pouco que sabe sobre si é suficiente para que procure seu prazer entre os compassos de ambos corpos latejantes.

O ballet dos corpos em se ajustarem, em se sentirem, os sons abafados (por educação, medo ou algo menos relevante)excitavam. O toque das peles, o roçar dos labios, as cores das paredes, o brilho de uma luz, o calor dos corpos, o escorrer da vida pelos poros se constrói em minutos eternos na memoria sensitiva e breves no relógio.

Em sua busca por algo mais ela aconchegou seu corpo montado no colo dele, com ambas as pernas encaixadas em sua cintura umedecida de desejos lânguidos e longos. Leves movimentos, músculos retesados, controlados para logo se descontrolarem. Olhares se trocam, se entendem antes de serem fechados por um segundo. Frio no estomago, saliva na boca, suor pelo corpo. Seus cuidados com o frágil corpo que ira recebê-lo já não são mais necessários, mas perduram tênues em sua consciência semi-perdida em seu mundo silencioso. O que antes era uma explosão de verbos, na sensação corporal passou a ser silencio total. Invasão de sensações no corpo, calma, prazerosa, temerosa, sufocante, extasiante.

Como todo encontro as cegas deveria ser, o fim é estranho. Mas a frase “tocar o mundo do outro com amor, como se fosse o seu” se repetiu na mente e a gratidão de ter trocado energias tão sagradas e de reconhecimento e aprendizado valeria o fato de terem se tocado apenas por pouco tempo.

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Nota da Autora: Você que está nesse mundo de aplicativos, vitrines sensuais e encontros que acham ser vazios.... Você se conhece a MUITO mais tempo que qualquer pessoa que vai te conhecer agora. E o que você faz com isso? Se esconde? Cria uma carapaça lúdica, financeira, estética para atrair pessoas? Ou simplesmente as atrai pelo que você vibra pelo universo?

Nisa Benthon
Enviado por Nisa Benthon em 05/12/2018
Reeditado em 04/05/2020
Código do texto: T6519262
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