Contos da cidade morena 9
Naquele dia, eu estava com a tarde livre. O refeitório do trabalho estava em reforma, e os expedientes foram divididos e distribuídos de forma aleatória semanalmente, para que ninguém conseguisse se planejar e arrumar um bico fora. Era final de outubro, e a reforma, que era pra terminar em novembro, perdurou até o começo de dezembro, o que foi ótimo na verdade.
Durante meu cigarro pós-almoço, trocamos algumas mensagens e combinamos de nos encontrar no centro da cidade. Fazia um calor exagerado, mas nas sombras das árvores dava pra se refrescar legal. Terminei meu cigarro, tomei um banho rápido, me arrumei e saí para encontrá-la. O trânsito estava horrível como de costume, mas o ar condicionado e o som ligado tornaram o caminho mais agradável. O lugar do encontro seria um shopping no centro da cidade. Ela tinha saído da autoescola e pararia para almoçar na praça de alimentação do referido shopping. Depois de encarar o furor do trânsito da hora do almoço, consegui um estacionamento perto, tranquei o carro e fui encontrá-la. Ela terminava sua refeição quando a encontrei. Pedi um chope e ficamos conversando sobre aleatoriedades. Eu tinha muita dificuldade nos começos de conversa com ela, mas em questão de minutos, essa tensão inicial passava, e tudo ficava bem. Dessa vez ela vestia uma blusa preta e uma saia vermelha. Um par de brincos dependurados, uma faixa no cabelo e uns óculos escuros de lentes redondas.
Quando saímos de volta pra rua, paramos para fumar um cigarro. Falamos sobre a ida dela para outra cidade, protegidos do sol da primeira hora da tarde na sombra da marquise do shopping. Decidimos ir até a Praça Aquidauana, tomar caldo de cana e passar o tempo conversando. Nos sentamos numa pequena escadaria que dava para rua de baixo, onde tinha uma sombra muito fresca. Ao lado da escadaria, havia uma espécie de palanque, uns trinta centímetros acima do nível do chão, e cercado por trás por parapeitos para evitar queda para a rua de baixo, que ficava mais de um metro e meio abaixo. Ali uma garota, que aparentava não mais do que dezoito anos, jogava malabares, e nos acompanhou com os olhos quando nos sentamos na escadaria. Na posição em que sentamos, só podíamos ver sua cabeça e os malabares no ar. Depois de nos acomodarmos, começamos a fumar, a garota malabarista se mostrou incomodada com nossa atitude. Guardou os malabares na mochila, pegou sua bike, e antes de sair na direção oposta à que estávamos, tirou alguma espécie de papel do bolso, e colou na pilastra onde terminava o parapeito, na face que não conseguíamos ver, e finalmente foi embora. Rimos disso, e deixamos pra lá.
O sol caminhava sem pressa, e o ar sem vento parecia tornar a travessia pelos céus mais lenta ainda. Perseguimos as sombras, enquanto nossas conversas nunca morriam. Ela me contou histórias da infância, de como se virava desde cedo, o que fazia me identificar bastante. As histórias de vida se repetem ao longo do mundo, todo dia, toda hora. Às vezes, são boas. Às vezes, não. Depende sempre do que tiramos de cada situação para enfrentar a próxima.
Já passava das 16 horas quando no sentamos do outro lado da praça e finalmente conseguimos identificar o que a garota malabarista tinha colado na pilastra. De início, não quisemos acreditar, até que levantamos e fomos ver de perto. Era um adesivo com uma suástica nazista. Aquilo nos chocou e nos intrigou com a mesma intensidade. Conversamos um tempo sobre isso, e resolvemos sair dali. Paramos numa sorveteria na Afonso e nos refrescamos. Depois nos sentamos na praça do Rádio e cada um acendeu um cigarro.
- Eu não aguento mais essa cidade – Ela me disse, enquanto a fumaça fugia pela sua boca.
- Te entendo.
- Tudo que eu vivi foi aqui. Sempre as mesmas pessoas, os mesmos lugares. Isso me sufoca às vezes.
- Já são quase 4 anos que não volto a minha cidade. Nem tenho intenção.
- Eu vou mesmo para o Rio. Ver o que acontece por lá.
- Vale a pena tentar. Será que aquele bar da esquina ali pra cima já abriu?
- Podemos verificar.
- Acabando esse cigarro, a gente vai.
A tarde já caminhava para os seus minutos finais quando nos sentamos na mesa da esquina. Pouca diferença tinha se era segunda-feira, e que eu estava perdendo aula na faculdade. Ela iria mesmo embora, e eu queria aproveitar ao máximo sua companhia.
- Saca só – ela me disse – nesse horário costuma chegar a primeira brisa do fim da tarde.
- Eu nunca reparei.
- Daqui a pouco, presta atenção.
Nem dois minutos depois eu senti a brisa fresca, que anuncia oficialmente o fim das tardes de primavera por aqui. Depois disso, nos beijamos e sorrimos atoa. No fim da noite, a deixei em sua casa. E a dor da partida já mostrava certos sinais de intensidade.