O Dono do Mar
Um dia, eu lhe disse:
- Vamos conhecer o mar.
O menino olhou para mim sem entender. Parecia perguntar:
- Conhecer o mar? Então, teríamos que pegar o trem, viajar, fazer baldeação na Azurita, subir a montanha, descer a montanha, até chegar à praia? Demorava muito, custava dinheiro... É muito pra lá de Belo Horizonte. Vovô não está bem!
Tinha que esclarecer, assombro de neto não fica sem resposta. Fui à estante. Atrás dos livros e da coleção de X-9, estava a concha de caramujo com que alisava há anos a palha do meu cigarrinho e botei no ouvido dele:
- O mar está aí. Pode fazer o que quiser. Você pode cruzá-lo a nado, ir até a África, de onde vieram os escravos; você pode se imaginar numa montanha, lá de cima vai avistar as ondas espumando ao sol; verá as ilhas onde há palácios e muitos reis, rainhas, fidalgos, camponeses, saltimbancos, salteadores, navios de piratas... Você pode embarcar num navio, daqueles enormes, um transatlântico maior que um prédio de Belo Horizonte. Você pode tudo. Escuta aí!
O ruído e a umidade do vento e das ondas estavam de verdade ali dentro do caramujo. O resto era fechar os olhos e imaginar a areia, a onda indo e vindo, o sal na pele, o sol queimando. O mar, o neto só ia conhecê-lo de verdade uns dez anos depois, em Vila Velha. Porém, aquele dia, viu a África e os negros seus vizinhos de rua vindo de navio, descendo no porto, pegando estrada, subindo a serra, chegando a Minas e vindo morar ali em frente da sua casa.
- A viagem foi muito demorada? Teve tempestade? Os capatazes eram muito maus?
Os vizinhos não responderam. Na certa, estavam ainda com medo dos mercadores de escravos.
Pois, então, o mar respirava ali dentro, prisioneiro do meu avô! Incrível, cabia todinho ali! Os olhos do menino expeliam faíscas de curiosidade. O avô adivinhou o que ele ia pedir:
- Esse, não posso te dar. É pra alisar a palha do meu cigarro. Quer aprender? Vou trazer outro, com outro mar dentro, o Pacífico. Este aqui é o Atlântico. Depois podem vir os outros, Ártico, Antártico, Índico... Aí já vamos chamá-los oceanos.
Então lhe disse:
- Agora chega de mar. Agora você vai é parar o tempo.
O menino arregalou os olhos. Eu lhe mostrava meu relógio de algibeira e lhe pedia para olhar os ponteiros sem ver as horas. Devia ser muito complicado para os seus sete anos. Deixei de lado.
- Um dia, você vai fazer isso. Aí será dono do tempo, vai viajar para onde quiser, para frente e para trás no tempo, que nem o Radar, o Homem do Espaço, que nem o Píter, que nem a Bárbara e o Canhoto. Basta exercitar. Mas agora vamos pescar. Lá no São João está cheio de timburé. Na volta, a gente faz uma fritada igual àquela do ano passado.
Depois de aposentado, ficava mais em casa, só saía no dia de eleição ou no dia que a mulher cismava de mudar, juntava os cacarecos, contratava uma carroça e lá íamos nós pra outro canto da cidade. No tempo em que trabalhava, só ficava sabendo da mudança quando voltava pra casa fechada e uma vizinha, avisada pela patroa, me dava o novo endereço.
Para a eleição, tirava o terno e gravata do guarda-roupa, botava os suspensórios de ir à missa e caminhava até o Fórum, para votar e ver os amigos. Ás vezes, eu distraído com meus trens, rádio ligado, ele chegava de mansinho e, silencioso, admirava o meu trabalho de esculpir, com canivete, cabos de faca, cabos de furadores de papel na madeira e sereias na pedra-sabão. Encantava-se com as colchas de retalho que costurava e dava de presente às noras e filhas casadas. Aquilo me consumia o tempo, enorme depois da aposentadoria. E a curiosidade dele me fazia consultar dicionários, o Tesouro da Juventude, a Barsa e outros, para ter sempre uma resposta na ponta da língua.
O rádio sintonizado o dia inteiro na Nacional do Rio era outra maneira de viajar e comentei isso com ele:
- Podemos viajar sem sair de casa.
A programação Ia de novelas a humor, passando por transmissões de futebol. Ensinei-lhe, também, a sintonizar lentamente as emissoras de ondas curtas e a interpretar os ruídos estranhos como o Universo pulsando. Parava nas mensagens criptografadas de outras galáxias, que nós iríamos decifrar juntos, quando fôssemos cientistas famosos:
- Esta é uma mensagem de Antares. Querem estabelecer contato com os terráqueos. Câmbio!
Depois, eram as aulas de idiomas, quando passávamos devagarinho por muitas estações do mundo inteiro, que também pulsavam em línguas diferentes. Ele se encantava com as coisas que escutava e não entendia:
- O que estão falando, vovô?
- Isso aí é alemão, Naquela rádio que passou por último, o locutor falava inglês, mas não entendi direito. E passou também uma estação árabe, porque falavam como os libaneses daqui da cidade, quando conversam entre si. Deve ser rádio de Beirute, a capital daquele país. E eles não são turcos, são árabes. Sírios e libaneses falam árabe.
O menino me fazia companhia para escutar O Anjo, Jerônimo, O Herói do Sertão, O Cavaleiro da Noite, e me ensinou a gostar de Radar, o Homem do Espaço. Eu também gostava de ficção científica, mas para ouvir essa série tinha que sintonizar a Tupi, logo depois de terminar O Anjo e perdia um pedaço d’O Jerônimo.
- Vovô, escuta: Píter já vai.
E imitava a voz cavernosa e o passo pesado do robô caminhando lentamente em direção à entrada da Supernave Thor, que, logo em seguida, ia viajar a velocidade próxima da luz.
- É verdade que se a nave viaja na velocidade da luz ela derrete?
- Desintegra, desintegra sim.
Um dia, comecei a sentir umas dores e me levaram para tratar em Belo Horizonte. Não tive tempo de desinfetar uma casinha de caramujo onde iria aprisionar o Oceano Pacífico para ele, conforme prometi. Mas quando voltasse...
Num domingo de futebol, foi-se embora sem nunca ter visto o mar e sem despedir-se do menino. Esqueceu-se da promessa que fez: não lhe trouxe o Oceano Pacífico dentro de outro caramujo. Talvez, por isso, o neto não o tenha seguido até a descida à última morada: preferiu ver o jogo na tevê.
Na mesma tarde, depois do futebol, desceu ao quintal enorme onde, às vezes, encontravam duendes e reinos encantados. Catou na enxurrada uma casinha de caramujo recém-abandonada e levou-a para o pai:
- Vovô deixou esse caramujo pra você colocar o Oceano Pacífico dentro, se ele não sarasse da operação.
O pai desviou o rosto para que o filho não lhe visse os olhos marejados d’água e fez que sim, olhando o Poente.