História colhida por Verão
História colhida por Verão
Quando a madrinha chegou com a notícia de que a vovó tinha virado uma estrelinha, mamãe me mandou arrumar a sacola com minhas coisas. Mamãe olhou pro céu, depois pra sua barriga e foi buscar flores no quintal. Quando voltou, entregou um saquinho de flores e deu sua benção. A madrinha me deu uma sombrinha. Ela disse que aquele Sol ainda poderia deixar qualquer cuca louca.
Andamos suando toda a roupa.
- Madrinha, é verdade que papai foi encontrar vovó?
-Sim, menina, eles já devem ter se encontrado.
O Sol parecia falar comigo, até parecia que queria me consolar, chegava pertinho, dava toques perto dos meus cabelos. Se ele queria falar comigo, acho que ele estava dizendo: “coitadinha de você, menina, já viu a Morte levar seu pai e agora sua vovó.”
Ele parecia perceber o Frio que eu sentia, se aproximava em vai-vem. Continuou: “Depois que ganhou um padrasto, um anjinho também.” E: “Você está sentido medo da Morte encontrar agora a sua mamãe com aquele bucho tão grande e também levar mais um anjinho...”
-Está vindo, menina.
Depois de quase uma hora esperando, debaixo do Sol, entramos no ônibus. Sentamos. Não sabia mais se o Sol estava conversando comigo, ouvia papai, ouvia vovó, ouvia mamãe, ouvia anjinhos.
-Menina, chegamos.
Descemos, minhas pernas pareciam não obedecer muito, mas tivemos que andar. Madrinha foi andando uns passos na frente.
-Madrinha, mamãe não vai morrer, não é?
Madrinha me olhou, parou, pegou na minha mão, continuou andando, balançando a cabeça de um lado pra outro. Ouvi baixinho ela fazendo prece, fechando bem forte seus olhos.
Passamos pelos cajueiros, algumas flores eram vermelhas, mas estavam secas, não tinham mais cajus, somente restos nas castanhas sobre o chão. Agora, faltava passar por um riozinho, eu lembro. Olhei para cima e vi jacas, meu pai gostava de levar jacas pra gente. Passamos pelo Rio, por uma ponte de madeira, a Água era tão transparente, a cor amarelada no fundo parecia os pelos de um cavalo correndo. Senti aquele cheiro de água e capim: “Sim Riozinho, sou eu, eu consegui crescer, não é? Você também está triste?”
Pertinho dali, vi algumas meninas tirando flores, mas adiante pessoas na porta da casa da vovó, o padrinho olhando baixo. O Escuro estava chegando, mas ainda sentia que o Sol não tinha me deixado, sentia seu manto em toques.
-Madrinha...
-Menina, você está geladinha, Meu Deus! Chega homem!
Meus olhos não queriam abrir, parecia que algo os apertava. Ouvi um canto, parecia que eu já tinha ouvido aquilo. Minha barriga por dentro estava queimando. As vozes eram de choro, um canto de choro, vozes de mulheres, eu acho que já tinha ouvido:
“Já é uma hora, os anjos vinhero te vê
E ele vai, e ele vai, e ele vai também com você...”
Uma luz correu por entre a escuridão, não sabia se eu deveria me levantar e segui-la. Ela era tão firme, parecia aquela bolinha que aparece quando a gente coloca as lentes de aumento de um óculos contra a luz. Parecia mesmo uma bolinha, parecia que voava, parecia um floco.
Papai contava a história dessa luz, mas só deveria segui-la a pessoa que fosse muito corajosa, ela levaria a um tesouro, mas poderia fazer a gente se perder e nunca mais voltar. Seria como um labirinto de gemidos, escuridão e também claridade do Fogo, em chamas, devorando velas.
Suspirei fundo, todo o Ar que consegui. Levantei-me e corri atrás dela. Continuei seguindo, agora ela corria, corremos, de repente apenas flutuava. Parou, cheguei bem perto. Estávamos embaixo de uma jaqueira, agora ela tentaria entrar na terra. Assim aconteceu. Comecei a cavar do jeito que papai contou. Cavava desesperadamente, as vozes muito altas tentavam atrair minha atenção, minha pele ardia. Cavava e cavava. Eu estava quase ficando cega quando comecei a apalpar todo aquele monte que radiava, era o tesouro.
-Angélica, tudo bem?
Olhei, era tia Marina. Ela me contou que eu tinha ficado com febre.
- Já levaram a vovó Josefa para descansar para sempre.
Comi um pouco de canja, olhei pela janela e vi o riozinho passando, sereno. A madrinha entrou na sala, deu a benção, foi até a sala conversar com o padrinho e com a tia. Duas moças estranhas estavam sentadas mexendo em seus aparelhos, não falavam nada. Nessa hora, a madrinha olhou pra mim e disse:
-A comadre foi ganhar neném.
A mamãe foi ganhar neném.
Eu bem que queria embalar o nenenzinho, cantar baixinho a cantiga do sapo cururu, meu papai cantava pra mim... Será que não morrerão?
A tia Marina pediu para eu trocar de roupa, pegar minhas coisas e ir para o carro. Era manhã, o Sol estava reinando como nunca, as Nuvens azuis dispostas no Céu, sabiam que eu os olhava, pareciam todos calmos.
Tia Marina vivia na capital, papai gostava muito dela, dizia que eu deveria estudar muito, ser como a sua irmã. “Ela não é casada!”, mamãe dizia. Era muito bonita, usava roupas tão leves que mais parecia ser uma fada. Todos diziam que eu tinha os seus olhos, pequeninos, eu ficava encolhidinha no meu canto ouvindo tudo.
As duas amigas da titia também foram com a gente. A mais alta sentou-se na frente. A outra ficou ao meu lado. Elas eram mulheres da cidade grande, olhavam de forma diferente, pareciam que não tinham vergonha de nada, nem mesmo medo, os olhos estavam sempre prontos. Minha madrinha me disse que eram do Sul, elas vinham sempre visitar a tia no verão porque gostavam do Sol dessa estação, mas o engraçado é que aqui o Sol era sempre assim, a qualquer época, poderiam vir sempre. Elas não sabiam?
O carro da tia tinha um cheiro doce. O Sol estava firme, era mesmo um rei. As nuvens descontraídas estavam como bailarinas. As moças continuavam mexendo em seus aparelhos. Tia Marina colocou uma música bem baixinha, bem suave.
-Eu gosto de flauta.
-Você tem um bom gosto para música, Angélica.
-Tia, a mamãe está viva, não é?
-Sim, seu irmãozinho vai mamar tanto até ficará uma bolinha, um tesouro, ela vai adorar a nossa visita.
“Um tesouro!”, foi isso que encontrei. Meus olhos o encontrou nos da minha mãe, ela amamentava a bolinha do meu irmãozinho, do mesmo jeito que a titia falou, e toquei seu rostinho com as minhas mãos.