Qual o fio que liga a realidade à fantasia? Será uma linha?

Como é maravilhoso te ver livre no ar! Lá no alto! Bem mais alto! Em uma imensidão azulada, rodopiando; correndo sem medo e sem direção precisa. Tem momentos que parece dançar uma música alegre soprada pelo vento. Sinto-me voando também... Existe uma linha nos unindo! Invisível! Mágica! Tão comprida... mas tão comprida... sem fim...

- Leca, já para dentro, menina! Você está de novo atrás de arraia?! Já lhe disse que isso é coisa de menino! Parece até moleque macho!

Dessa vez quase consegui! Uma lindona caiu pertinho daqui! Se não fosse o grandalhão que passou na frente, eu teria corrido e pego logo. Poxa! Que vontade de ter uma arraia!”

Era época de arraia. A menina sempre ansiava por esse período. Desde que viu uma arraia pela primeira vez, seu coração pulou de alegria. Nenhum brinquedo a tinha fascinado tanto. Até porque só tinha brinquedos de “brincar dentro de casa”. A rua era para os brinquedos dos meninos. No máximo, só podia brincar na varanda. E isso, quando não tinha algum risco. Era o que a mãe explicava o tempo todo, exigindo obediência e uma compreensão ainda não possível de uma garota de doze anos e com um imenso desejo de liberdade.

Sua mãe era muito medrosa. Leca não entendia o porquê. Amava-a muito, só não sentia medo dessas coisas, muito menos, entendia por que pipa era só para meninos. Gostava de andar na rua. E queria que o tempo da arraia durasse a vida toda. Quem sabe assim, um dia, uma cairia bem pertinho dela...

A garota estudava também aos sábados, porém neste, a aula foi suspensa sem aviso prévio. Sua mãe que sempre a deixava lá quando estava indo para o trabalho e só a pegava de tardezinha, não teve outra alternativa: deixou a filha na casa da irmã que morava em uma rua vizinha à escola. Ela evitava ao máximo fazer isso. Pois a irmã, que só tinha filhos homens, não sabia cuidar com a atenção devida de meninas. Era muito desatenta!

A garota, acompanhada da tia, seguiu a mãe até o portão, mas nem a viu adentrar apressadamente o ônibus, pois já estava espreitando o céu em busca de sua distração preferida. Assim ficou sem ser interrompida por ninguém até ser surpreendida pela visão do seu primo mais velho saindo saltitante com uma grande pipa na mão.

A sua emoção foi tanta que nem lembrou mais das recomendações que recebera de permanecer dentro de casa... Começou a seguir a arraia, estava fascinada, totalmente seduzida pela imagem do objeto tão desejado.

Tuca, seu primo, ao passar carregando sua chamativa pipa, era logo acompanhado por outros garotos. Alguns carregavam rabadas, cordões, colas, papeis de várias cores, tesouras e muitos carretéis de linha, muita linha.

A menina via tudo, cada vez mais deslumbrada com toda aquela movimentação. Não sabia que se tratava de um campeonato de pipas a ser muito brevemente iniciado. Cada garoto era responsável pela confecção do seu “avião de combate”, e aquele que permanecesse mais tempo sem ser derrubado seria o campeão.

Só quando haviam chegado ao campo onde ocorreria a disputa e já começava a alçar sua arraia ao vento, Tuca deu conta da presença da menina, mas não podia, naquele momento, levá-la de volta, pois correria o risco de não poder participar mais da tão esperada brincadeira. E ele tinha quase certeza de que seria o campeão daquela vez, pois confeccionara sua arraia antecipadamente com muita dedicação. Chamou a prima para perto de si e começou a elevar sua arraia ao ar. O vento ajudou, e logo seu “caça” estava girando freneticamente no espaço e derrubando todos os outros que cruzavam seu caminho.

Assim as horas se passaram sem a menina perceber... O tempo para ela havia parado. Estava deslumbrada!

Após algumas horas, seu primo era o único a reinar com sua majestosa nave no céu. Ele conseguiu “cortar” todas as outras arraias e venceu a batalha. Nesse momento, vendo a euforia da garota, e por achar que ela lhe trouxera sorte, resolveu presenteá-la, passando-lhe a linha. Não tinha mais com o que se preocupar, a sua arraia já havia cumprido com o seu papel. Não sabendo ele que a grande missão dela ainda estava se iniciando...

De posse da linha, a menina parecia levitar, tamanho era o seu contentamento. O universo era ela e a arraia. Ambas voavam livremente no espaço... Estava em verdadeiro êxtase! Sem dúvida, aquela era a mais intensa experiência de sua circunscrita existência.

- Leca!!! Largue essa arraia menina! Você passou de todos os limites! Vou te dar uma surra!

A mãe surgiu a certa distância. Sua voz parecia um trovão, trazendo uma feroz tempestade.

O susto foi tão grande que a garota quase solta a linha, distanciando-se para sempre da arraia... porém, ficou paralisada, imóvel.

Sua mãe, aos berros a alcançou. E...

Ao tomar bruscamente a linha da mão da filha, inexplicavelmente, foi invadida por fortes lembranças da sua própria infância...

Não conseguiu soltar imediatamente aquela linha ... Não conseguiu soltar a linha... nunca mais...