UM CRIME PERFEITO NOS PAMPAS GAÚCHOS
Está escrito na carta de despedida: chegada na casa velha quinta-feira, às 22.35min, saída às 23.25min.
Zé Evaldo, mais conhecido na região por Rei do Gado, era um gaudério cheio de vida e apaixonado por sua estância, um gauchão buenaço. Usava sempre chapéu de aba larga, botado no cocuruto da cabeça e preso num barbicacho; no pescoço um lenço colorado, lembrando o timão de coração e sua simpatia pelos antigos republicanos; na cintura, sempre um facão de três palmos. Esse era o tão famoso Rei do Gado que viveu pelas bandas de São Borja e fez história. É lembrado ainda hoje por muitos. O tal Zé Evaldo, o Rei do Gado, era rústico, mas ao mesmo tempo os peões da fazenda o achavam inteligente, sem ter estudado parecia versado nas letrinhas, enculherava as letras com mui facilidade.
Seu apelido não era por ser o maior fazendeiro da região, mas por seu amor e dedicação com a criação de gado. Sua casa não era das melhores, por vezes até tinha goteiras. No entanto, sua invernada era a mais guasca dos pampas arredores. Muitos vizinhos paravam para o olhar a belezura de seu gado quando ele com seus peões trocavam os animais de pastagem. Criava também cavalos de raça e isso dava um toque especial na boiada. Tinha também entorno de umas mil ovelhas, além de um açougue na própria fazenda. Nunca pensou morar na cidade, sua vida era ali. Dizem que tinha também um empreendimento na cidade: um açougue. Todavia, passava por lá uma vez que outra, apenas para levar carne.
Zé, era casado com uma mulher que nunca se enturmou com os peões, era uma professora de corpo franzino, loirinha, de olhos azuis, sorriso meigo e fala macia, moça de cidade que Zé Evaldo conheceu em um baile no qual ela participava por estar visitando parentes. Esta tal mulherzinha chama-se Ângela, os parentes de Zé não queriam o casamento, queriam que ele casasse com uma chinoca da região e não com uma professorinha. Enfim, passaram-se três anos de casados e o conhecido Rei do Gado foi informado por um índio véio, seu amigo de longa data, que sua mulher estava traindo-o com um professor que havia chegado à cidade há pouco tempo. Os amantes se encontravam na casa velha. Aqui é preciso explicar onde ficava a casa velha. Ficava a uns cinco mil metros da casa principal da fazenda e mais ou menos, mil metros da estrada que levava até a cidade e localizava-se ainda às margens de um riacho. No inverno sempre as bergamoteiras estavam arcadas de frutas, a casa ficava no meio das árvores, praticamente escondida. A casa era utilizada de vez em quando, durante o dia, por alguns peões que passavam por ali quando trocavam o gado de pastagem. Era possível chegar a casa pela estrada que levava a cidade ou pelos campos do Zé.
Não demorou muito tempo e muitas famílias sabiam que o tão conhecido e admirado Rei do Gado era corno manso. Era comum ver a professora dar carona após o trabalho ao professor forasteiro. Zé apenas acompanhava os comentários, não falava nada, trabalhava e trabalhava, sua vida era trabalho. No entanto, observava tudo o que diziam e faziam, descobriu que sua mulher se encontrava com o dito professor na casa velha às quintas-feiras. Ele saía da escola a pé e ela de carro o pegava e iam à casa velha.
Zé acompanhou essa traição por um mês e, como todos já esperavam, num certo dia o casalzinho desapareceu. Todos os que conheciam o Rei do Gado ficaram com muita pena do pobre homem: um chirú honesto, trabalhador, bondoso, não merecia que sua mulher o abandonasse de tal forma. Algumas pessoas viram o carro dela saindo da cidade. Após alguns dias houve pessoas que chegaram a dizer que ouviram comentários que alguém teria visto o casal entrar no Paraguai.
O pobre Zé ficou muito abatido, passou a trabalhar mais ainda e falava muito pouco. Era comum ouvir as serras do açougue cortando carne até altas horas da noite. Quanto ao casal fujão com o passar do tempo ninguém mais falava, até as fofocas desapareceram. Porém, os mais próximos da família de Zé demonstravam preocupação com ele, por sua falta de comunicação e isolamento.
Passaram-se dez anos e em uma manhã fria de inverno os peões da fazendo viram uma cena horrível na casa velha: estava lá, dependurado o então falecido Rei do Gado, enforcado, roxo, com a língua de fora, devia estar ali pelo menos uns três dias. Já estava com mau cheiro.
Até hoje, oito anos depois que o Rei do Gado se suicidou, o povo de São Borja lembra deste homem com admiração pela pessoa que era e pelo que sua mulher lhe fez, todos dizem a mesma coisa: ele se matou de desgosto.
No entanto, caro leitor, depois de oito anos que meu tio, o Rei do Gado, se enforcou eu descobri a verdadeira história. Já estou contando este causo há um bom tempo e ainda não me apresentei, talvez seja oportuno dizer que além de sobrinho do Rei do Gado eu sou estudante de história da Faculdade dos Pampas. Ano passado em minhas férias resolvi visitar a antiga “casa velha” que de casa não tem mais nada, apenas uns alicerces, e muitas bergamoteiras ao redor. Eu observava tudo, imaginando os detalhes da triste história de meu tio que cometeu suicídio. Nisso descobri algo surpreendente, havia uma velha caixa de ferramentas dentro de um fogão campeiro, aqueles de barro que não existem mais. Retirei a caixa do meio dos destroços do fogão velho. A caixa estava fechada com um cadeado, quebrei o cadeado e eis a grande surpresa: havia alguns papéis em estado precário dentro da referida caixa. Comecei a lê-los, descobri então que era uma carta de meu tio, uma carta de despedida antes dele se suicidar. Os tais papéis que ficaram escondidos por oito anos guardavam um grande segredo. Meu tio confessava um macabro crime. Transcrevo com minhas palavras o que ele deixou para ser lido.
Deixo esta carta aos meus familiares e amigos para que saibam que eu me matei para matar comigo o monstro que existe dentro de mim. Sempre busquei ser um bom gaudério, mas depois que descobri que estava sendo traindo por minha mulher e que muitos às escondidas falavam do que ela fazia comigo e sentiam pena de mim; comecei a seguir com atenção cada movimento dela. Todas as quintas eu ia até à casa velha e observava eles fazendo amor, observei por um mês. Eles chegavam as 22.35min e saiam as 23.25min. Estávamos em pleno verão, muito calor, então sempre depois de se amarem eles tomavam muita água, havia uma geladeira velha a qual os peões também a utilizavam. Os dois às vezes chegavam e colocavam suco ou cerveja para gelar, depois, antes de ir embora tomavam como dois amantes sedentos de líquido. Ao ver tudo isso, algo muito forte foi tomando conta de mim. A cada dia que apreciava tal cena uma espécie de cavalo selvagem se debatia dentro de mim. Este animal selvagem estava enjaulado em meu ser, e era muito bem escondido pela conduta de bom homem que sempre apresentei. No entanto, a cada dia ele tinha mais força sobre mim. Ele era como uma força oposta. Eu tinha meus princípios, meus valores, mas esta força selvagem me puxava para longe de tudo aquilo que aprendi como correto em minha infância. A força era tão grande que decidi abrir às portas e soltar o animal que estava dentro de mim: comecei premeditar a morte dos amantes, isso me trouxe um alívio imediato, comecei então, concretamente planejar o crime.
O primeiro passo que tomei foi ir até a fronteira em um desmanche de carro. Alguns anos atrás roubaram um carro meu e foi encontrado naquela região. De fato, o que eu havia planejado não foi difícil conseguir. Eu fiz o seguinte trato com uns malandros daquele lugar: eu os levava até uma cidade próxima de São Borja e iria facilitar um
roubo . Expliquei nos mínimos detalhes onde ficava a casa velha, lá na casa, em uma quinta-feira de madrugada eles teriam um carro com a chave na ignição, era só levar o carro para o Paraguai de madrugada. Deviam buscar o carro em duas pessoas: um homem e uma mulher.
Bem, o primeiro passo do crime estava concretizado. O segundo passo dependia somente de mim. No dia planejado peguei meu tordilho negro e fui até a casa velha esperar o casal. Fui pelo rio para não deixar rastro do cavalo. Chegando lá aguardei. Como das outras vezes, chegaram às 22.35min. Eu pela última vez vi eles se amarem, desta vez eu só estava preocupado que desse certo meu plano. O que via não me angustiava. Concretizei o segundo passo, eles se amaram e consumaram o que planejei. Ao chegar eu fui até a geladeira e coloquei veneno no suco. Os dois depois de terem feito sexo selvagemente não hesitaram em tomar todo o suco, conseqüentemente não demorou muito e os dois estavam lá estirados na cama, completamente imóveis, até hoje não sei se estavam mortos, mas penso que sim. Emergia, então, o próximo passo: dar um fim nos corpos. Com muito cuidado observava onde pisava para não deixar rastros e fui até a casa. Peguei primeiro ela e levei-a até o riacho, onde estava o meu cavalo, coloquei-a cuidadosamente no lombo do cavalo, fiz o gesto que muitas vezes havia feito nos anos em que éramos casados, muitas vezes a vi sorrir quando eu a colocava no cavalo. Em seguida, fui buscar o traste do professor, fiz a mesma coisa. Com os dois no lombo do cavalo segui pelo riacho até a casa na estância. Chegando lá, vagarosamente levei-os para o açougue, lá eu passei na serra primeiro minha mulher, depois seu infeliz amante. Cortei-os como qualquer rês nas madrugadas em que eu não tinha sono.
O próximo passo foi esquentar o tacho e colocar soda e sebo. Não tardou e minha amada mulher e seu amante eram uma coisa só: Sabão. Fui dormir e no outro dia cortei os pedaços e guardei-os no porão de minha casa. Esse sabão ficou lá por um ano. Depois coloquei em uma carroça e levei até o campo e, ali enterrei e plantei um lindo pé de cáquitos sobre eles.
Depois de ter feito o que fiz nunca mais vivi, apenas sobrevivi. Hoje isso me atormenta, não consigo mais viver com o que fiz. Foram dez anos de profunda escuridão e tristeza em minha vida. O cavalo selvagem desapareceu, mas fui atacado por morcegos e corujas noturnas. Não vejo mais luz, não tenho mais sonhos e nem esperanças. Sinto que estou queimando aos poucos, então me pergunto: por que não apagar de vez? Não tenho medo da morte, tampouco sei o que vai acontecer depois de tirar minha vida. Mas me consola saber que em meus 50 anos de existência nunca lamentei os milhares de anos em que eu não existia antes de nascer, portanto, não lamento se com a morte deixarei de existir para sempre.
Eis minha estória, eis meu crime cometido nestes pampas gaúchos.
Zé Evaldo Mendes