Os gritos varando a madrugada nunca foram esquecidos, assistir a  crescente obsessão de Nélia pelo único filho,  em contrapartida com o ódio pelas filhas, foi doloroso. Por noites e noites,  ela  gritou o nome do filho, clamando de forma desconexa a presença do rapaz. A situação ficou tão ruim, que não restou alternativa senão chamar  os bombeiros.
Eles nada puderam fazer, alegando  que os hospitais psiquiátricos não iriam aceitar Nélia;  aparentemente lúcida e respondendo às perguntas na mais absoluta tranquilidade. Nélia estaria fingindo? Naquela fase talvez fosse possível, mas com o passar do tempo, ela foi ficando cada vez mais perdida. 
Isso se repetiu várias vezes;  irritados com os gritos, os vizinhos pediam ajuda; a ambulância vinha e Nélia de algum modo conseguia se controlar. 
Seis meses após o início do primeiro transtorno, Nélia já havia perdido quase vinte quilos, estava abatida e não conseguia mais acompanhar as conversas. Não assistia tv, não lia, nem parecia se importar com nada além do filho. O  único interesse continuava sendo o filho, que morava em outra cidade e estava sempre ausente.
Uma infecção urinária acabou levando-a para o hospital público, onde ficou internada três meses, oscilando em melhoras e pioras, cada vez mais fraca e atormentada;  foi nessa época que Nélia começou a agredir fisicamente as filhas. 
Impossibilitadas de acompanhar a paciente, Nelma e Norma chamaram o irmão e deram o ultimato: ou ele se responsabilizava, já que a mãe rejeitava todos os demais, ou iriam entrar na justiça para conseguir abrigo em alguma instituição psiquiátrica.

Robertinho ofereceu a terceira solução, ele iria pagar por uma cuidadora e a mãe poderia voltar para a própria residência. Ele arcaria com todas as despesas, desde que não fosse incomodado. As irmãs a princípio tentaram algum acordo, mas como não tinham condições financeiras para argumentar, aceitaram supervisionar o dia a dia. 
Nélia voltou para casa e continuou gritando o nome do filho, passaram-se duas ou três semanas até que a medicação forte alcançou o efeito desejado.  A mulher forte e gorda do passado,  aos poucos foi perdendo a cor, os cabelos começaram a cair, e por fim todas as roupas dançavam no corpo alquebrado. 

Tudo estava mais tranquilo no bairro, aos poucos as pessoas pararam de falar de Nélia, e ela foi sendo esquecida. Até que Robertinho, talvez arrependido, decidiu dar uma passadinha rápida para ver a mãe, que aparentemente estava muito mais calma.

Quando  Nélia ouviu a voz do filho, começou a chorar e questionar o abandono;  a nora tentou explicar a ausência e descuidada, aproximou-se o suficiente para ser agarrada com força. Foi preciso três pessoas para tirar Nélia de cima da moça, e neste momento ficou claro que não era amor de mãe. Era uma obsessão,  incontrolável, doentia, que nem o tempo ou calmantes conseguiam aplacar. 

A cuidadora começou a ter problemas com Nélia, que se recusava a tomar banho, passou fazer todas as necessidades fisiológicas na cama, no chão, onde estivesse. Xingamentos e tentativas de agressões tornaram-se comuns, e os gritos voltaram, principalmente durante a madrugada. Os vizinhos reclamavam, ligavam para hospitais, instituições, polícia, mas a saúde pública não podia, ou não queria  intervir. As duas mulheres passaram a discutir, Nélia berrava palavrões, jogava coisas na cuidadora, que  aos poucos foi se cansando e começou  a revidar.

Um dia a cuidadora  não apareceu, e a família se desesperou com a falta de candidatas; a fama de Nélia era conhecida e as irmãs não conseguiam controlar a mãe. Finalmente conseguiram uma mocinha totalmente inexperiente,  mas amável e aparentemente carinhosa. Adelaide referia-se a Nélia como vovó ou vovozinha;  falava com os vizinhos que ela estava assim por conta de falta de amor. Algumas senhoras concordaram, outras achavam que a menina iria se decepcionar rapidamente;  contrariando o óbvio, nada aconteceu. Nélia gostou  de Adelaide, que fazia todas as suas vontades e não tinha qualquer autoridade.  

Estávamos em dezembro, essa época do ano mexe com a gente, foram anos de amizade. Eu e Nélia  praticamente criamos os filhos juntas,  e sempre fomos boas vizinhas. Éramos amigas do tipo que uma assava  um bolo,  e levava um pedaço para a outra provar. Talvez eu também estivesse me sentindo um pouco culpada por ter me afastado. 
Certa tarde preparei  um bolo de milho com bastante erva doce, o favorito de Nélia, cobri com um pano de prato novinho  e tomei coragem. Enquanto atravessava o jardim de Nélia, notei o quanto as plantas estavam feias e queimadas pelo sol. As roseiras que haviam sido  tão admiradas, pendiam murchas; todo o conjunto causava muita tristeza.

Adelaide atendeu e me convidou para esperar  na varanda, entreguei o bolo e ela foi busca Nélia, que  estava especialmente estranha naquela tarde.
Sentamos lado a lado como antigamente;  mas  ela não me olhou uma única vez. Tinha a atenção na rua ou na entrada da casa, algumas vezes esboçava uma espécie de sorriso torto, e balançava a cabeça que sim ou que não. Parecia ensimesmada, comeu o bolo e recusou o café.  Ficamos quietas por vinte minutos; notei  que ela escondia alguma coisa no bolso do vestido.  De tempos em tempos,  enfiava a mão e alisava o papel dobrado. Disfarcei e tentei enxergar o que havia, e para meu espanto, vi a  foto de Robertinho.  Gasta pelo manuseio, era  foto do casamento, só que a parte da noiva não existia, estava rasgada.



II  - Lembranças.


Robertinho recebeu esse nome em homenagem ao pai, o homem mais popular do bairro na juventude. Sujeito  boêmio, exímio jogador de bilhar, bom de copo e de papo. E nada afeito ao trabalho, disputadíssimo pelas mulheres antes, durante e até mesmo após a morte. O casamento com Nélia só aconteceu por imposição dos pais da moça, que estava grávida e tinha dezessete anos. Quase dezoito, tanto que casaram-se no dia do aniversário da noiva, que não escondeu de ninguém que a gravidez havia sido proposital.
Nélia sempre foi apaixonada por Robertão, como foi apelidado após o nascimento de Robertinho. Pai e filho se amavam mais que tudo, Nélia amava os dois mas não sabia evitar outros bebês.  Assim nasceu Nelma e depois Norma, que não haviam sido uma escolha. Com a casa cheia de bebês, Robertão passava mais tempo na rua e Nelma não conseguia controlar os casos do marido. Lembro que quando a gente conversava,  ela sempre dizia que no primeiro ano de casamento, Robertão havia sido o marido exemplar, mas a chegada dos outros filhos havia posto tudo a perder.

Lembrei do  aniversário de um aninho de Robertinho, tão luxuoso que o casal contratou o circo do Carequinha, o palhaço mais famoso da época. Teve garçom e os salgadinhos e doces vieram de um buffet famoso e muito caro;  o acontecimento do ano, todos afirmaram. Robertão e Robertinho viviam o mundinho deles, e Nélia se contentava em assistir e fazer as vontades dos dois. Festas, passeios, viagens, nada era o suficiente para agradar o filho querido.

As meninas só comemoraram o aniversário quando estavam grandes, Nélia afirmava que não iria gastar dinheiro em  festa para adultos. Nelma e Norma só ganharam um lanche com os coleguinhas quando foram para a escola; um bolo comum fatiado e enrolado em papel laminado, sei disso porque eu fazia bolos para fora. Na época tentei confeitar, mas Nélia não deixou. Usaram a mesma caixa de isopor e os enfeites que que eram as sobras da festa do irmão. Nelma e Norma sempre dividiam a festinha. Robertinho nunca dividiu nada com as irmãs.
Nem mesmo a escola pública, para ele só a melhor educação paga e na zona sul, as meninas que se virassem no bairro. No começo as crianças não entendiam bem, mas conforme cresciam e as disparidades aumentavam, começaram os questionamentos. O  menino não dava a mínima para as irmãs que eram sempre castigadas, Nélia dava surras nas meninas por qualquer razão; dizia que eram malcriadas e respondonas, e ninguém nunca ousou questionar.  Era a educação de uma mãe zelosa, eu acreditava nisso, naquela época era costume repetir um ditado popula: pé de galinha não mata pinto.  Pois é, muitas galinhas devem ter matado seus pintinhos;  essa certeza dói muito.

Enquanto observava Robertinho acenar para um e outro vizinho curioso, as imagens passavam na memória: as meninas fazendo a primeira comunhão com roupinhas emprestadas, o menino reluzindo na camisa de cetim e bermudas de linho.  
Os cabelos de Nelma sempre amarrados em coques apertados, os fios repuxados das tranças de Norma, penteados emplastados de gel. Os cascudos e beliscões que Nélia não se cansava de aplicar nas filhas magrinhas, os abraços e chamegos com o filho;  a felicidade quando o menino passou para o colégio Militar. O ar de pouco caso quando uma após a outra, Nelma e Norma repetiram a sina da mãe, engravidando e saindo de casa ainda adolescentes. Tudo começou a fazer sentido. Nelma aguentou a morte do marido,  mas não o casamento do único filho, tudo começou logo após a mudança de Robertinho para outra cidade.

Me sentia anestesiada, relembrando coisas que na época pareciam banais, mas que de banais nada tinham. Mãe. Essa palavra nunca era dita pelas meninas, que só a tratavam por dona Nélia, pobres crianças que  durante anos e anos não receberam a menor atenção. Por que a gente é tão cega, - logo eu que enchia meus filhos de mimos e dengos, que nunca fiz qualquer distinção- por quê nunca pensei nisso antes?

Lembro  que minhas filhas eram amiguinhas das meninas de Nélia,  elas sempre pediam para dormir e ficar lá em casa, mas quase nunca tinham permissão. A mais novinha havia até implorado para ir morar na nossa casa, para poder comer bolo de chocolate sempre que quisesse, e eu ri. Ri achando que era coisa de criança, não percebi que elas comiam com gula as fatias que eu servia nos lanches, que Nelma arregalava os olhos quando eu oferecia mais um pedaço. Elas talvez sentissem fome, ou talvez não ganhassem as mesmas coisas que o irmão, sempre tão gordinho. Eu estava muito arrependida, jamais havia pensado que a situação pudesse ser tão ruim.



Dia de Natal 

Ocupada com compras e preparativos para a ceia, só me dei conta quando as visitas começaram a chegar e as calçadas passaram a ser disputadas para estacionar o mais próximo possível das residências.
A casa de Nélia ficava bem em frente à minha, e estava cheia de parentes, provavelmente por ser uma casa grande e espaçosa, que sempre havia sido usada para todas as comemorações. Nélia estava sentada na cadeira de balanço na varanda, o verão sempre castigou nossa região com temperaturas altas e o  ar abafado, e naquele ano parecia pior.
Minha amiga estava arrumadinha, desta vez usava roupas de acordo com seu novo manequim. Apesar da quantidade de pessoas, ela estava sozinha e senti vontade de desejar um feliz Natal. E foi neste momento que um carrão branco parou, de altíssimo luxo e tinindo de novo, chamando a atenção de toda a vizinhança. De dentro saltou Robertinho e a esposa, ele trazia um embrulho imenso cheio de laços dourado e vermelho.

Minutos depois, Robertinho estava ferido e Nélia caída no chão da varanda. A família parecia em transe, não se mexiam , paralisados diante da cena. Ninguém soube explicar  como Nélia  havia conseguido pegar o facão de fatiar aves, tudo aconteceu muito rápido.   Robertinho protegeu a esposa e levou a pior;  o corte no antebraço sangrou muito, mas sem grande gravidade. 
Desta vez  a ambulância levou Nélia, que ficou ainda mais transtornada; ela gritou, culpou as filhas, xingou e reafirmou seu amor pelo único filho. 

Não houve mais clima de festa  para várias famílias do local, e para mim só restou arrependimento e muita culpa por não ter percebido e feito nada para ajudar as duas irmãs. Para dizer a verdade, muito recentemente ouvi falar deste tipo de comportamento, nunca imaginei pudesse existir. Nasci neste lugarzinho perdido na zona oeste da cidade do Rio de Janeiro, um bairro miserável e cheio de gente de todo tipo. Ser pobre não é desculpa para maltratar filho, eu também sou de origem humilde e tive uma boa família.

Sabe,  de vez em quando me pego pensando no passado, nas amigas da época e consigo identificar uma ou outra, que agiam parecido com Nélia. Talvez seja só a impressão do acontecimento, talvez eu tenha razão, não sei. Nélia está internada em uma instituição psiquiátrica, ninguém quer saber dela,  provavelmente vai ficar lá até o fim. Sozinha.
Não, eu não tenho coragem de ir visitá-la. Talvez algum dia, talvez.
Giselle Sato
Enviado por Giselle Sato em 02/11/2018
Reeditado em 04/11/2018
Código do texto: T6492843
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2018. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.