Boneco de Cera

Talvez este seja meu último texto. Mas só talvez. Busquei nas cartas e nos astros alguma resposta que me confortasse, mas só escrever me é válido. Não estou fazendo nenhuma espécie de epitáfio ou qualquer tipo de carta de despedida. É que o acaso é danado, e nem Deus sabe do que se trata o tempo, a isso que chamam destino.

Eu amei muito todos que me rodearam, talvez sem saber transparecer direito, do meu jeito matuto e ansioso de ser. Perdão por todos os meus erros, perdão às divindades e a toda gente. Eu tentei viver em cima de algumas filosofias, cavalguei muitas psicologias, e acho que talvez tenha conseguido, pelo menos um bocado. Alimentei muitas paranoias, confesso. Mas carreguei alguns traumas que seguiam e seguem gritando nas profundezas de minha mente tagarela.

Gordo, eu fui. Até que decidi virar estrela, não como Macabéa; metamorfosear meu corpo, mas não como Gregor, não como lagarta a borboleta, nem como girino a sapo, e sim algo mais humano como lobo a lobisomem, por exemplo. Por tantas vezes me senti um boneco de neve, por outras um boneco de cera. O sol sempre me derretendo, sempre um inimigo, e eu sempre fugindo às espreitas das pessoas felizes, me refugiando na sombra, nos livros. Era pura vaidade, medo de ser feliz, do corpo que eu carrego feito um fardo. As estrias formam mapas, cada caminho levam a uma imperfeição que sustenta toda a minha perfeição. Mas estou me despindo, e não me despedindo.

A família um tanto perturbada, ora uma caixa de marimbondos, ora uma caixa de surpresas me mostrou mesmo no olho no furacão o que é amar, mesmo que tenha sido assim, meio liquidificado. Mãe que me na sua infinita humanidade se rebela por não poder ser heroína sempre. Pai que na sua eterna proteção se convence de que qualquer descuido traz um efeito dominó. Irmão que muda as leis da matemática, e ensina que menos é mais e que dividir é multiplicar. Primos, sobrinhos, tios, avós, mãos que amparam e acalmam de forma genuína e generosa. Amor, marido, paciência e coragem de construir um destino incerto e misterioso, mas sincero e sublime. Se eu virar anjo, olharei por todos e tenho certeza de que terei asas gigantes para aninhar todo mundo.

A gata se lambe nos pés da minha cama, a TV ligada no mudo, e o ventilador dançando para espantar os pernilongos. Uma estante cheia de livros, tão quietos e tão cheios de conteúdo, assim como eu. Alguns anseios me assombram, outros me apressam. Alguns sonhos me perseguem, outros me inspiram. Os cachorros se coçam na varanda, e eu me despeço do meu amor. Beijos, boa noite, te amo! Depois que eu voltar eu só quero poder sair à tardinha, comprar a camisa maneira da vitrine e não ter medo dos olhares que aparecem na escuridão dessa floresta enfeitiçada quando eu decidir não usá-la sob o sol.

Rodrigo Amoreira
Enviado por Rodrigo Amoreira em 26/10/2018
Reeditado em 26/10/2018
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