UM GESTO APENAS
O sol escorregava pouco à pouco por trás dos pinheiros, que filtrando seus derradeiros raios, pareciam estar pintados a ouro fresco.
Na janela do velho casarão, Joana fitava a estrada de chão batido, que afinando-se, perdia-se na distância. Uma lágrima descuidada perdeu-se nas rugas do rosto cansado da pobre mulher. O vento morno e travesso de dezembro esbarrou na prata de seus cabelos, enfiando-se casa adentro. Mais uma vez ela fita a estrada inutilmente. Nem um vulto, nem uma vaga sombra.
- Eles não virão mais... esqueceram-me...
O cão late no quintal. Felícia limpando a mão no avental, grita da cozinha, indo em direção à porta dos fundos.
- Do’a Joana, do’a Joana.
A velha senhora tem um sobressalto.
- Serão eles ? Certamente quiseram me fazer uma surpresa.
Corre rapidamente para a cozinha. Passando diante do espelho da sala, ajeita um grampo no cabelo e arruma a gola do velho casaco de astracã.
- Quem é Felícia ? São as crianças ?
- Recolha-os, devem estar cansados.
- Meus filh...
A esperança se desvanece. Apenas um homem envergando trapos, com barbas e cabelos longos, segurando na mão direita um saco, que não se sabe a que tempo já fora branco, estava à porta. Parecia cansado e doente, suas pernas mal podiam suster aquele corpo curvado.
- Ajude-o a entrar, Felícia.
- Mas... mas do’a Joana é um estranho, um pedinte, i so nois duas, pode inté se um bandido.
O homem não se agüenta mais e cai porta adentro.
- Valha-me Santa Genoveva, grita Felícia. Será que o home morreu, do’a Joana?
- Ajude-me aqui, vamos recolhe-lo. Deve estar doente, com fome talvez.
Com um pouco de esforço as duas mulheres conseguem leva-lo para o quarto dos fundos.
- Puxa! Que fedor, acho inté que nem nunca vio água na vida.
- Vai Felícia, vai e põe água para ferver e faça um bom café. Apanhe também no quarto, umas roupas do falecido Ambrósio, vamos tirar estes trapos fedorentos.
- Ma i a sinhora vai lava o home, do’a Joana ?
- E acaso eu não lavava e não trocava o Ambrósio durante os onze meses que ele ficou paralisado e fazia tudo na cama ?
Então, o que está esperando, vai buscar a roupa.
Joana despiu o mendigo e lavou-lhe com água morna e sabão.
- Me dá a camisa Felícia e ajude-me a vesti-la.
Nunca viu homem pelado mulher ? Ajude-me a ergue-lo.
- Minha Santa Genoveva ! Que táio feio ele levo ai no peito, patroa.
- Óie so o tamanho da marca.
- Deve ter brigado, Felícia, sabe-se lá o que foi.
- Se fosse do otro lado tinha rasgado o coração.
- Chega de espanto Felícia. Me ajude, vamos ver se ele bebe o café.
Aos poucos o homem foi engolindo o líquido cálido que Joana lhe colocava na boca, derramando uma porção na camisa bege e limpa que usava agora.
- Se ele não melhorar, amanhã cedo o levaremos ao doutor Cindino.
- Agora pega estes trapos Felícia, e vai queimá-los.
Felícia pegou as roupas com as pontas dos dedos voltando o rosto para não sentir o desagradável cheiro que exalavam, e saiu para o quintal.
Joana vai para a varanda. Senta-se na velha cadeira de balanço, tão velha quanto ela. As sombras da noite envolveram o casarão. O perfume dos jasmins, forte e adocicado que vinha do jardim invadira todos os aposentos. Lá fora as primeiras estrelas faiscavam num céu de veludo azul-marinho. A solidão e a saudade apoderam-se do coração de Joana que suspira profundamente. Somente uma andorinha que voltava atrasada para seu ninho no beiral compreendeu a dor da pobre senhora que ali estava, porque certamente ela também ansiava em estar com seus filhotes.
No vai-e-vem da cadeira Joana pensava:
- Ah! Meus filhos, meus queridos. A última vez foi no enterro do Ambrósio.
- Como estará o Paulinho, será que o Luís aparou a barba. E o Deodato, era tão caprichoso, gostava tanto do engenho. Maldita cidade grande que nos rouba os filhos. Lucinha está casada é certo e o Setúbal, passa os dias confinado naquele escritório e esquece que as pessoas necessitam de atenção e carinho. Dinheiro, dinheiro, tudo fica. Depois quando a gente morre, aí eles choram, inutilmente...
O relógio da sala bate oito horas. Felícia entra trazendo uma xícara de chá com bolinhos de polvilho. Joana tenta esconder disfarçadamente as lágrimas, mas Felícia já percebera.
- Ué ! patroazinha, a sinhora ta chorano, que foi que lhe aconteceu?
Felícia largou a bandeja sobre o banco de madeira, aproximando-se de Joana.
- Deixe-me Felícia, eu quero ficar sozinha.
- Mais i proque a patroa ta chorano ?
- Ora Felícia, porque sinto saudade, ou os velhos estão proibidos de senti-la ? É os tempos mudaram tanto, vai ver que até isso proibiram aos velhos. É verdade que estou enrugada como papel crepon, de cabeça branca como a flor do algodoeiro e tremendo como um pé arroz quando a brisa sopra; mas meu coração ainda sente Felícia, o coração que ama não envelhece porque o amor é sempre jovem, e meu coração tem ainda muito amor, amor pelos meus filhos, amor pelo ser humano.
Ah! Minhas crianças, vocês esqueceram a velha mãe Joana.
E abraçando-se à Felícia desabou em soluços.
- Fique carma patroinha, eu já vou indo já fazê um chazinho de erva-cidreira e, dispois os meninos pode inté vim pro começo de Ano. Hoje é Véspera de Natar e a noite ta linda que so vê, patroa. Tem missa a meia noite e a festa na creche Menino Jesus que a sinhora preparo. Se a sinhora não tivé lá não vai sai dereito. Ah! Como tava bonito no ano passado.
- Acho que este ano eu não vou, Felícia. Vai você com a Guiomar. O mendigo também não pode ficar sozinho. Vamos que ele se arruíne.
- Ai! Do’a Joana, so por causo disso é que a sinhora não deixa de ir. Antes eu nem tivesse atendido à porta, antes ele tivesse caído na rua.
- Não fala assim Felícia, Deus sabe das coisas, Este homem não é diferente de nós, é tão gente como qualquer um. Quem sabe o que se escondia debaixo daqueles trapos, não é mesmo Felícia.
- Huh! Pra mi trapo é trapo, patroa.
- Sabe Felícia, o mais importante não é a roupa que cobre o corpo mas sim o corpo que a roupa cobre.
- Já sei patroa nois podia leva o home cum a gente. Acho que ele inté ia gostá. Tarveis ele nem nunca teve Natar, nem anfância, coitado dele.
- É você tem razão, Deus dá forças a quem dela precisa. Já que as crianças não vieram, levaremos o mendigo conosco, pelo menos faremos alguém feliz.
- Que bom patroinha.
- Pare de me chamar de patroa, somos mais que duas irmãs, pelo tempo que vivemos juntas.
- Ta bom patroa, disse Felícia encabulada.
A creche estava toda iluminada. Num canto do salão, um enorme presépio com seu risonho e rechonchudo Menino Jesus no seu humilde leito de palhas, ao lado direito, o altar ornamentado com flores brancas para a celebração da missa.
Felícia percorre o salão com o olhar.
- Do’a Joana! Oia lá o mendigo com o terno branco do seu Ambrósio, perdão, do seu falecido Ambrósio.
- É Felícia, não tinha outro que lhe servisse, e...
Frei Albino entra paramentado para a celebração do Santo Ofício. O Coral de meninas Santa Clara entoa Noite Feliz. O coração de Joana se aperta e uma lágrima travessa escapa-lhe dos olhos...
A missa termina.
- Vão em paz e que o Senhor os acompanhe.
- Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
- Que o Menino Deus os abençoe e os proteja e Feliz Natal a todos.
Após a missa todos acomodaram-se como puderam. Fez-se silêncio e o Papai Noel entrou causando medo e alegria às crianças. Começa a entregar os presentes, eram tantos que pareciam não acabar mais. Até o mendigo recebera um presente. Era um par de chinelas que Joana preparara de última hora. Ele sorria ao ver a alegria incontida das crianças. Era um sorriso largo e franco, como o sorriso de um pai a contemplar o contentamento dos filhos. As mesas foram postas em duas alas. Havia muitos doces, tortas, nozes castanhas, pães de vários tipos, refrescos e, como a festa era para crianças, o vinho fora substituído por suco de uvas. Antes porém de começarem a comer, ensaiadas por Irmã Alda, as crianças cantaram O pinheirinho de Natal e, com palmas agradeceram a Dona Joana pela festa. Era ela, que todo o ano patrocinava com a pensão que seu falecido marido lhe deixara.
Felícia estava sentada ao lado de Joana, o mendigo à cabeceira da mesa, à sua esquerda. Do outro lado, Frei Albino e a bondosa velhinha, madre Teresa.
Todos serviam-se à vontade.
O mendigo apanhou apenas um pão e encheu o seu copo de suco de uvas. Tomando do pão, partiu-o e colocou um pedaço de cada lado do copo e, segurando este com ambas as mãos ergueu-o, seus lábios murmuraram uma prece inaudível para os presentes. Ao baixar o copo seus olhos azuis, como uma nesga de céu primaveril, de um azul sereno e penetrante, encontraram os de Joana, que baixou a cabeça respeitosamente.
Frei Albino e Madre Teresa entreolharam-se. Felícia estendeu a mão.
- Do’a Joana faiz favor de me arcançá um docinho de nóis. E olhando para o mendigo.
Nossa como o mendigo ta bonito. Inté se parece com Jesuis com essa ropa branca. O Jesuis da Dona Sofia é inguarzinho a ele.
Ele sorriu docilmente, toda aquela simplicidade lhe aprazia. Estava entre os seus.
Aos poucos todos se foram retirando. Dona Joana e Felícia despediram-se de Frei Albino e de Madre Teresa.
- Feliz Natal Frei Albino, Feliz Natal Madre Teresa.
- Essa mulher, disse Frei Albino à Madre Teresa, referindo-se à Joana. Parece ter a juventude eterna no coração.
- Sim Frei, aquele que ama pelo simples prazer de amar é sempre jovem, e sabeis o quanto ela ama estas pobres crianças órfãs.
Irmã Luiza entra com um pacote.
- Dona Joana, Dona Joana, é para a senhora, foi deixado na portaria, por um jovem louro que não quis dizer o seu nome, disse que a senhora saberá de quem se trata, assim que abrir o pacote.
Joana tomou do pacote e o abriu. Ali estava o terno branco de Ambrósio e um saco vazio que não se sabe a quanto tempo já fora branco, entre as dobra um telegrama que dizia:
- Feliz Natal Mamãe imprevistos não passamos Natal contigo. Iremos Ano Novo. Beijos.
Lúcia, Paulo, Luis e Deodato
A mulher apertou o papel contra o peito.
- Obrigado Senhor !
- Que foi que sinhora falo, Do’a Joana ?
- Nada não Felícia, vamos indo. Adeus a todos.
Ao passar pela portaria, Joana detém-se diante do quadro que está na parede.
- Deixe-me ver este quadro, Felícia.
O quadro era uma cópia de “ Os peregrinos de Emaús “.
- O que foi do’a Joana, este quadro faiz tanto tempo que ta ai i a sinhora nem nunca paro pra oiá, ta inté disbotado.
- É verdade Felícia, faz muito tempo que este quadro está ai, e está mesmo bastante desbotado. Mas há uma coisa nele que não desbotou e nunca desbotará, porque foi e sempre será pintado à pouco.
- E o que nunca disbota, até a gente disbota com o tempo.
A bondosa senhora sorriu e segurando Felícia pelos ombros:
- É o gesto de dividir que nunca desbota Felicia, ele é sempre novo.
E saíram as duas abraçadas para dentro da noite morna e silenciosa.
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