MEMÓRIAS ENTERRADAS
“no limite do encontro das almas
A chegada de mamãe rompeu
Todo e qualquer muro em volta de mim.”
(Cristiane Sobral)
In memoriam,
Enir de Oliveira
Eu componho a quinta geração da minha família. Ao invés da terceira pessoa tão usual e imparcial, toma-se no lugar a afirmação do meu corpo por inteiro. Leiam ela para os mais conservadores, e eu para os mais democráticos.
Ela passou 27 anos de sua vida se perguntando. As respostas nunca vinham. Pontos de interrogação sempre foram como vírgulas no texto da vida. Sabia da responsabilidade de inaugurar uma geração de pessoas letradas e com formação superior. Em contrapartida, suas inquietações partiam sempre dos enterros de memórias nas lacunas das gerações anteriores. Não haviam registros, fotografias, e nem se quer um único mais velho para rememorar, voltar nos tempos do Morro dos Macacos, da vida e infância dos filhos na rua trinta, na Rua Saré e Acaú. Eram 21 irmãos. Dos quais uma restou, mas é como se no labirinto da vida houvesse se perdido no espaço.
De quantas Marias não estamos falando? Quantas peças não foram encenadas e quantos personagens não foram vividos? É possível reinventar mais de quinhentos anos de história e seguir adiante? Qual Maria terei eu de interpretar para dar continuidade a tantas histórias?
As reuniões em família não eram comuns. Conforme o tempo foi levando os nossos mais velhos, cada vez mais ficaram difíceis os encontros. Quando aconteciam era regados a cerveja, churrasco e um bom samba. Mas as memórias, aquelas lembranças pouco ganhavam espaço no ritual das confraternizações, quando ganhavam algum! Mas aquele dia a coisa ficou diferente. Naquele dia havia um ser disposto e um coração que teimava em recolher os retalhos espalhados. Ninguém queria reinventar uma nova infância. Mas no coletivo, o desejo era costurar os pedacinhos de pano, a fim de finalmente dar acabamento para essa colcha de soluções.
Estávamos na metade da colcha e os mistérios continuavam a rondar e a se esconder nas lacunas da vida. Toda vez que nos olhávamos no espelho, espíritos ancestrais petrificados pelo tempo nos olhavam. A profundeza daqueles olhares nos enviava mensagens de pouco em pouco para que cumpríssemos a nossa missão. Muita coisa ainda precisava ser desvendada e organizada no diário de nossas vidas. Faltavam pedaços nos fragmentos de vovó Enir. Ninguém sabia como se faziam aquelas garrafadas, as rapaduras deliciosas, as cocadas artesanais, os remédios caseiros que curavam sarna, verme, cobreiro, barriga d’água e até anemia. O segredo congelara, assim como sua vida há mais de 6 anos. Com ela parte da sabedoria do povo da mata e das lavadeiras do começo do século. Sim, vovó era filha de mulheres escravizadas! Ninguém sabe se Nagôs ou Bantus, mas todas com uma ancestralidade de dar inveja em qualquer sinhozinho de engenho. Não foi por isso e não por isso que ainda nos matam?
O rubro sangue de tantos meninos. Alguns tios. Outros filhos e tantos outros guris perdidos tentando achar o caminho de volta. Um vermelho ávido a fecundar o Pau da Bandeira antevendo sementes que germinaram em outra geração. Do broto ao fruto. Do verde ao amadurecimento de feridas abertas reduzidas a cicatrizes de memórias. Memórias estas revividas em cada transe nos terreiros da família. Ainda lembro daquele semblante liso como papel veludo. Aquela preta velha não tinha uma ruga em seu rosto cuidado com água de arroz. Dos ensinamentos de como esfoliar a pele em épocas tão escassas nunca esquecerei até a galinha ao molho pardo que ficou flutuando parada no tempo da vontade.
Era pra ser só mais um domingo. Um dia como outro qualquer. Mas não foi. Aquele dia marcou um futuro em minha vida d’onde eu, Maria encontrei memórias enterradas nunca antes reveladas. Encontrei o tom, o acorde e o som necessário para continuar a encenar esse teatro de emoções. Seja onde for e em qualquer lugar a nossa geração sempre vai continuar.
Quebrei os muros existentes em volta de mim. A fim de abrir a liberdade pro meu meio coração. O retorno de minha avó abriu as portas rompendo com os elos perdidos na vida. Nasci pra continuar unindo as almas que ainda não se foram.
(Jacqueline Òbá)