A FACADA

O sujeito era banqueiro. Herdeiro da primeira geração de industriais do país, cedo enveredou pelo ramo financeiro, onde se trabalha nada e ganha-se muito. Basta não ter escrúpulos. Entre os trinta e os oitenta anos, amealhou uma fortuna que, só agora, após sua morte aos noventa e oito, foi devidamente avaliada.Tivesse sido antes, ele teria figurado na Forbes como um dos mais ricos do Brasil, senão o mais rico. Dizem que suas terras, no Nordeste, Norte e Centro-Oeste, se somadas todas, correspondem ao território do estado de Alagoas. Mas a lista não termina aí. Há apartamentos em Paris, em Mônaco, em Copacabana; mansão em Angra dos Reis; jatinho e iates. Além de uma coleção inumerável de obras de artes dos mais famosos pintores e escultores da humanidade.

Logo após seu sepultamento em Paris, onde vivia e morreu, veio da França um advogado e procurador incumbido de abrir seu testamento, guardado por um tabelião do Rio de Janeiro. Como ele não tinha herdeiros diretos, já que nunca casou-se e nem teve filhos, havia grande expectativa em torno do testamento. Uma infinidade de sobrinhos e sobrinhas, espalhados por Minas Gerais, Rio de Janeiro e Espírito Santo, acorreram à capital fluminense para assistir à abertura e ouvir a leitura do documento. Cada um alimentava a esperança de ser contemplado com alguma coisa do majestoso espólio. Em vida, o tio nunca lhes ajudou em nada. Entre eles, havia quem sobrevivesse de modestas atividades, cuja rentabilidade se contava em salários mínimos.

Feita a leitura do testamento, todos ficaram espantados com a única cláusula que continha. Depois de elencar um por um os sobrinhos, por sinal todos ali presentes, o documento estabelecia que a herança seria entregue a um deles: aquele que pudesse provar haver estado face a face com a morte e sobrevivido. Podia ser um tiro ou uma facada, contanto que houvesse transfixado órgãos importantes; alguém que tivesse saído vivo, e em chamas, de um imóvel ou veículo incendiado; quem tivesse sobrevivido à queda de um avião ou ao naufrágio de um barco em alto mar, etc. Caso nem um deles pudesse provar uma dessas situações, a fortuna continuaria a ser administrada por terceiros, até que um dos sobrinhos pudesse enquadrar-se na exigência. Enquanto isso, os lucros das atividades ligadas ao espólio seriam acrescentados ao patrimônio, ano a ano.

Encerrada a sessão, estava aberta a guerra entre os mais de sessenta possíveis herdeiros do bilionário. Reunidos num restaurante no Rio, chegaram à conclusão de que nenhum deles se enquadrava na cláusula estabelecida pelo tio. E ninguém estava disposto a brincar com a morte para enquadrar-se.

Dali, cada um seguiu para sua cidade, para sua casa, para seus afazeres. Passados dois meses do ocorrido, um deles, o Belisário, aconselhado por um grupo de amigos, começou a maturar uma ideia para pôr as mãos na fortuna do tio falecido.

- Mas tomar um tiro? Me cago de medo de revólveres! - disse ele ao mentor da tramoia, o Acácio.

- Pô, você quer ou não quer ser o cara mais rico do Brasil?

- Sim, quero. Mas levar tiro?

- É de mentirinha, cara! Tudo arranjadinho, combinado com umas pessoas aí, que vão colaborar com a gente. Juiz, delegado, padre, polícia e um pessoal do hospital.

- Não. Tiro não! Nem de brincadeira.

- E que tal uma facada?

- De verdade?

- Não. De faz-de-conta.

- Como seria isso?

- Deixa eu explicar. Já tenho os caras e tudo. O mesmo que daria o tiro dará a facada.

- Espera! Isso não vai ficar muito caro?

- Para você não. Você vai herdar bilhões, cara!

- Quanto vai custar?

- Uns trinta milhões. E somente se você ganhar a herança. Os caras toparam participar de uma jogada de risco.

Acácio explicou a trama. Dentro de três semanas haveria a romaria de São Bozoro, o padroeiro de uma cidade vizinha. Belisário faria o santo vivo sobre o andor. Estava tudo arranjado com o padre da paróquia local. Três policiais e mais uma dezena de seguranças particulares seguiriam ao lado do andor. Haveria uma ambulância em local estratégico e a equipe do hospital local, todos colaboradores, o atenderiam e tratariam de fazer a coisa parecer real. O futuro herdeiro estava tão ansioso pela fortuna que nem quis entrar em pormenores. Topou.

Nas duas semanas seguintes, ensaiaram publicamente a encenação da romaria. E Belisário, rapidamente, transformou-se em mito local. Fazer o São Bozoro era uma honraria reservada a poucos.

À noite, depois dos ensaios religiosos, iam para um sítio afastado da cidade, onde ensaiavam o "atentado". Um sujeito que estava na condicional se aproximaria do andor, em local milimetricamente pré-determinado, e desferiria uma facada no abdome do santo. Um mágico da cidade ensinou como a faca de papelão, revestida em papel alumínio, daria lugar a uma faca de verdade, que seria imediatamente apreendida pela polícia. Enfim, a coisa foi ensaiada rigorosamente, levando em conta cada pequeno detalhe. Era preciso fazer de tal modo que pudesse convencer aos procuradores do tio, administradores do espólio, de que o atentado de fato ocorrera.

No dia combinado, lá vai a romaria, a percorrer ruas e a principal avenida da cidadezinha. Ao lado do andor, os três policiais e os seguranças contratados, que figuravam como romeiros. No fim da avenida, ficava a pracinha, na qual se localizava a igreja, ponto final da romaria. Um pouco antes de desembocar na praça, o andor é colocado no chão para uma última pausa. É quando o esfaqueador atua. Ele surge de repente, vindo da multidão, e desfere certeira facada no centro do abdome de São Bozoro. Imediatamente é imobilizado por seguranças, que lhe tomam a faca, de uns 25 cm de lâmina, e tratam de levá-lo para a delegacia de polícia. Um dos policiais puxa do bolso uma pequena toalha e cobre o "ferimento" de Belisário, que é retirado do andor e levado às pressas para a ambulância, estacionada numa ruela a poucos metros do local. Dali, seguem para o hospital, distante não mais que cinco minutos de corrida.

Uma ala do centro cirúrgico é reservada exclusivamente para o caso. Ninguém pode ter acesso ao local, a não ser médicos e enfermeiros, e Acácio, o amigo mais íntimo da vítima. Belisário é amarrado na mesa cirúrgica e um dos médicos aproxima-se com uma seringa.

- Que é isso? - pergunta São Bozoro.

- Uma injeçãozinha - diz o doutor.

- Mas eu não tenho nada! Foi tudo teatro - protesta ainda o santo.

- O ato não acabou ainda, meu caro! A coisa tem que parecer real. Portanto, fique quietinho e deixe-nos fazer a nossa parte no combinado.

E sem mais palavras, chuchou-lhe uma dose de anestesia que o faria dormir por três horas!

Quando acordou, São Bozoro sentiu uma ardência no abdome e quis saber a razão da mesma. O médico retirou-lhe de cima o lençol e ele viu que sua barriga fora aberta e costurada do púbis até a altura do estômago.

- Meu Deus! Vocês são loucos! Que significa isso?

- Transformamos em real a farsa. Ou você acha que os testamenteiros não quereriam ver a marca da facada ou a cicatriz da cirurgia? - disse Acácio.

- Mas isso não estava combinado! - retrucou Belisário.

- Se eu tivesse falado tudo, você teria amarelado.

Em poucos dias, Belisário parecia estar prontinho para voltar para casa e iniciar os trâmites para receber a herança. Mas eis que uma estranha bactéria resolve interferir. Ele passa a ter febre alta e os médicos ficam alarmados. Nunca haviam presenciado algo assim. Comunicam o fato a Acácio, que, com muito tato, fala da situação ao amigo e comparsa. Nesse mesmo dia, chega a notícia de que Letícia, uma afortunada sobrinha do falecido, ex-modelo que fez fortuna nas passarelas do mundo, é dada como única sobrevivente de um desastre aéreo nas Ilhas Virgens Britânicas.

Três dias depois, Belisário, o mito, morre de infecção generalizada. No dia seguinte, é enterrado sob comoção geral do povo da inocente cidadezinha, que jamais tomou conhecimento da grande armação.

José Luiz Barbosa de Oliveira
Enviado por José Luiz Barbosa de Oliveira em 05/10/2018
Reeditado em 15/02/2019
Código do texto: T6468786
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