Travesti Rainha das Ruas
Chegara de uma forma escandalosa, mas habitual. De qualquer lugar da rua se via tal personagem ou o que venha a se chamar aquela aparição.
Era uma atenção roubada de nós, dada contra a nossa vontade. Forçados éramos a contemplar aquela figura que se deslumbrava de si mesma em meio a calçada - repleta de gente apressada e indiferente, eis a escuridão que escolhera para seus últimos raios de luz.
Não nos dizia nada. Talvez por que não merecêssemos ou não entenderíamos. Mas o que não era dito, era justamente para que não atrapalhasse o espetáculo. Era algo que simplesmente acontecia, como a explosão de um fenômeno exótico em meia a feiura dos rostos mal humorados e cansados.
Um terno vermelho, acompanhado de uma saia curta, dourada reluzente e sapato caro e salto significativo que a elevava acima dos pobres mortais transeuntes, mas talvez de segunda mão, segredos de brechós.
Um olhar de desprezo para aqueles que não tinham, ou que deveriam ter, alguma admiração por tudo que ela era. Embora ela mesmo tivesse as vezes dificuldades de saber quem ela realmente era.
A maquiagem propositadamente carregada era indiferente a bons sensos e limites, coisas reservadas aos seres comuns que escondem dos holofotes sua mediocridade. Não havia nada pra se esconder, mas sim pra se mostrar.
Após roubar nossa atenção, com seus gestos perfeitos de uma majestade sem corte ou reino, um breve sorriso de ladrão satisfeito com sua rapina dava lugar ao olhar arrogante e prepotente, ainda que vindo de uma majestade das ruas.
Devo ser justo, aquela majestade arrogante conseguia seus minutos de atenção, para logo depois, de nos roubado o tempo, nos desprezar. Mas nos dava algo, e as pessoas talvez consentissem com aquele roubo em troca de algo. Seria na verdade um sequestro em que as vítimas se apaixonam pelo sequestrador? Não sei dizer ao certo como cada um vivia tudo isto.
Tudo se passava em alguns minutos, antes que cada um voltasse a sua normalidade e necessidades entediantes e apressadas do cotidiano. Creio que talvez aquela potestade cheia de si que se deslumbrava de si mesma em meio a multidão anônima nos desse mais do que nós a ela oferecíamos.
Talvez ela nos visse como ingratos privilegiados, nos tornava súditos por alguns instantes. Nós passageiros atomizados, fluíamos como elétrons pelas infinitas avenidas que nos conduziam pelas ruas a qualquer lugar e a lugar algum.
Não andava pelas ruas como os demais mortais. Seu desfile era suntuoso como seguido por um cortejo de bajuladores invisíveis, penso que era nós mesmo que tomava por coadjuvantes deste séquito.
Aquela estrela que surgia em meio ao caos, despontava no iniciar da noite, enquanto alguns voltavam do serviço se preparando para o próximo dia. Ela começava o seu, por isto era como uma luz que intensificava gradualmente, enquanto nossa luz própria havia sido consumida em longas horas anteriores.
Por isto reinava por alguns minutos entre nós, isentos de luz ou brio, miseráveis e sedentos por descanso.
>> Uma rainha que também chorava
A solidão dos dias na espera que a noite trouxesse seus clientes e outras figuras típicas da noite fazia aquela rainha chorar. Principalmente quando pensava no amor que se recusava a viver.
Sentia orgulho de não se apaixonar ou a se entregar aos amores da vida, porém ao decidir sufocar o que o coração lhe pedia, tornara se também surda a estas coisas. Seria talvez o medo e a necessidade algo ensurdecedor que não deixava o coração ser ouvido, embora ele parecesse gritar as vezes. Quem vai saber?
Rostos anônimos poderiam esconder tantas histórias que ela poderia viver. Eram tantas portas, pra tantos destinos e tantos riscos.
Então algumas vezes, de toda aquela majestade algumas lágrimas borravam irritantemente a maquiagem. Entrava no carro apressada e retocava sem grandes explicações sem comprometer seu trabalho, seu profissionalismo.
>>> Tempos e espaços infinitos e repetitivos
Os dias se repetiam, espaços e pessoas. O futuro encurtado de possibilidades pouco animadoras e pouco propícias aos sonhos. Deixava tudo mais triste, porém o deslumbre e a majestade fossem persistentes.
O desprezo e o preconceito alimentavam os esforços daquela majestade. Quanto mais era negada e recusada, mais se fazia reconhecer, mais nos obrigava a ver. Melhor dizendo, mais tornava para nós irrecusável a força de sua personalidade transfigurada nas roupas, maquiagem, cabelo, expressões faciais e o andar.
Um reconhecimento que nunca foi expressado. Que precisava ser extraído dos olhares curiosos e algum sorriso que expressasse admiração ou empatia. Tudo muito incerto, mas não poderia ser incerta a pose, sempre acertava o alvo e nada escapava do seu olhar, que enxergava melhor a noite do que de dia.
>>> Peritos e uma Notícia de Jornal
Um cliente irritado tornou o que era para ser uma das tantas entre tantas noites de trabalho o seu fim. Não sabemos ao certo. O que ele viu naquela majestade. Não suportou sua luz, não entendeu que antes de haver a luz era preciso uma intensa dor interior, daquela que leva o indivíduos a brilhar mesmo contra toda escuridão, mesmo contra todas as tempestades.
Não sabia que ela majestade era forjada na dor, no desprezo, na coragem precoce e impotente diante de tanto sofrimento e tormenta. Nem todos são fortes, nem todos suportam a luz após descobrir a escuridão que lhe ressalta por contraste.
Havia sido morta na própria rua. Me lembrara uma estrela colapsada: a elegância da roupa, a maquiagem carregada, o deslumbre ainda presente, como os ares de um ator que acaba de sair de cena. O personagem ainda acompanha o ator, até que ele o esqueça.
Mas foi o personagem que ficou, como que nos dizendo "I will survive". Até hoje sentimos falta de suas aparições, os dias sem graça ficaram sem o deslumbre, seus súditos e o séquito de anônimos cansados ainda guardaram em suas lembranças aquele lampejo de luz que tornava a escuridão dos dias um pouco menos insuportável.
A nobreza emergida das ruas deixava sem majestade o reino metropolitano dos corações apressados e vazios. Éramos uma plateia para coisa alguma, distraídos com celulares, tentando esquecer que éramos ninguém em meio a infinita multidão de tantos outros ninguéns.
>>> Bônus
Certa vez deixara cair sua bolsa na calçada. Havia muitos no ponto de ônibus que passaram a observar o evento. Agachou-se sem pressa, inclinou lentamente o joelho, sem se encurvar demais. Sem olhar pro chão, apenas no momento certo e suficiente para apanhar o objeto.
Levantou-se devagar, limpou algum vestígio, com um lenço de branco impecável, a poeira e deu um breve sorriso sarcástico rindo da pretensão de quem pensasse que um objeto tão insignificante diante de sua majestade lhe impedisse exercer a elegância.