A Tutora
A noite caíra rapidamente. Ninguém, além de alguns cães, passeavam nas ruas calmas e escuras da cidade. Na casa, Eugénia velava ao leito de seu pai, que já entre a realidade e a morte certa, dormitava febril. A moça trazia a face pálida de cansaço e angustiosa tristeza. Olheiras negras lhe davam um ar funério, propício, talvez, a ocasião, mas que tirava muito da beleza de seus lindos olhos azuis, agora sombrios e opacos. Ninguém ousara entrar. Os empregados velavam do lado de fora e os poucos membros da família preferiam estar na sala, aguardando como urubus a sentença do destino. O coronel não tinha ninguém além de sua pobre filha. Não possuía filhos ou sobrinhos que pudessem amparar Eugênia em sua precoce orfandade e os outros parentes não eram senão oportunistas que, antes mesmo de esfriar seu cadáver, tratariam de pôr a menina trancada em algum orfanato para, assim, desfrutarem de sua herança. Definhara dia a dia e a certeza de que sua filha estaria entregue a desgraça, lhe ataiara a doença. Tratou, porém, de nos poucos dias que a lucidez lhe aflorara a consciência, tomar parte de documentos que pudessem, de algum modo, abrandar os sofrimentos da pequena. O primeiro destes, foi uma carta, cujo destinatário não deixou saber a ninguém o Coronel, nem mesmo ao preto que a fora entregar. Os outros papeis foram mera formalidade para garantir que as disposições de seu testamento fossem fielmente obedecidas. Tudo isso, no entanto, não lhe deixou menos inquieto acerca do destino que teria Eugênia após seu derradeiro suspiro, mas dava-lhe, ao menos, o consolo de ter feito algo por ela. Sucumbira, enfim. Notando que o Coronel não mais respirava, a moça desesperou-se e seus gritos doridos romperam a vigília silenciosa dos que aguardavam do lado de fora. Uma empregada mais velha da casa, amparou o choro compulsivo da órfã, fazendo as vezes da mãe que cedo também se fora. Aos parentes, couberam os pêsames velados de satisfação e já ali começaram a aliciar, discretamente porém, a menina, buscando alcançar a sua confiança para galgar o tão ambicionado cargo de tutor da vasta fortuna da qual era ela, agora, única dona. Porém, apesar de devastada, tinha Eugênia um espirito muito perspicaz herdado, sem dúvida, do falecido pai e não se deixou corromper ou enganar pelos afagos mentirosos dos seus parentes. Recolhera-se a sua dor e, tão logo concluídos os ritos que a formalidade impõe, fez sair um a um dos miseráveis de sua residência. Ficara ali o resto da noite, saindo apenas ao amanhecer para vestir-se adequadamente para os rituais fúnebres. Não houve velório. A ela parecia um ultraje a memória de seu pai permitir que hipócritas lhe depositassem palavras ou flores ao caixão. O enterro fora acompanhado por um ou outro amigo próximo, quase nenhum parente e Felipe, testemunha fiel e discreta dos acontecimentos. Tinha, à época, 25 anos. Recém formado, via em Eugénia concretizados os seus anelados sonhos e desejava ardentemente que também ela nutrisse sentimentos sinceros por ele, embora a própria já lhe houvesse dito que o encarava, tão somente, como irmão e amigo querido. Porém, o mancebo nutria esperanças e via no falecimento do pai dela a chance de mostrar-lhe a necessidade de ter alguém de estima e confiança ao lado, de preferência, como marido. Ele a seguia, oferecendo-lhe um braço silencioso e cuidadoso que ela aceitava sem perscruta -lhe porém, as intenções. Também estava presente a essa cena uma mulher, jovem em aparência, mas com a austeridade que só as senhoras vividas possuem. Vestia-se discretamente, mas vislumbrava-se o luxo do seu vestido e o brilho das poucas joias que usava. Vinha longe, sem misturar-se aos outros, como que desejando não ser notada. Apesar de claramente comovida, não chorava. Quando o caixão, finalmente, desceu a sepultura, caia uma chuva finíssima. Eugênia deixou-se ficar mais que os outros, olhando para o descanso eterno de seu pai e, pela primeira vez, perguntando-se como viveria sem a sua mão protetora. Contava somente 17 anos, muito longe da maior idade e da maturidade necessária para administrar tudo que herdara. Sentia-se a mesma menina que, tão pequena, viu sua mãe sucumbir a uma doença que a levara em pouco tempo, sem que pudesse despedir-se. Sentia-se desprotegida, desamparada e solitária em meio ao silêncio funesto do cemitério.