AFRICANIDADE: QUILOMBOLAS
1---O LEGADO NEGRO - Minas Gerais tem 300 grupos quilombolas certificados, muitos deles no Vale do Jequitinhonha, uma das regiões mais pobres do país, onde vive a dicotomia da miséria: abandono histórico, grilagem de terras e seca avassaladora, e por conta do isolamento conseguem manter quase intocadas tradições culturais que misturam batuque com viola, culinária mineira e nordestina, reinterpretação da religião católica e rituais de matriz africana. Esse rico legado foi amplificado ao início de 2016, aberta ao turismo a Rota dos Quilombos, que abrange 12 comunidades da região, tentativa de obter recursos através de simples subsistência - os próprios moradores treinados como guias de memórias. Um baú guarda estórias de mulheres fortes, como Isolina Antõnia de Jesus, a Dona Duquinha, 91 anos (em 2016), rainha-mãe do Caititu do Meio, que sustentou 9 filhos fazendo panelas de barro. Quilombolas, perfil de um pouquinho de Brasil e um pouco de uma raça que não se entrega nunca.
2---Suarentas, roupas empoeiradas de caminhantes por duas horas, gargantas secas, o grupo de mulheres da comunidade Caititu do Meio entrava em Berilo, cidade do Médio Jequitinhonha, a 550km de Beagá, sol escaldante, e logo escutavam "Ih, as pretas feiticeiras de Caititu." Se pedissem água, geralmente não eram atendidas. ----- Três décadas depois, a mesma fulana do 'não-copo', sem ser temida feiticeira, agora quilombola assumida e reconhecida oficialmente, faz evoluções ao som do batuque - Feitiço de Caititu, legado cultural que pode livrar todo mundo do ciclo de miséria local. Abandono histórico, fome, latifúndios, grilagem, seca inesperada, vale da miséria mineiro, na intenção de... atração turística, ninguém duvide. ----- No Brasil, hoje cerca de 5.000 quilombolas, é o que está no livro "Mocambos e quilombos, a história do campesinato negro no Brasil", do professor de história FLÁVIO GOMES - menos de 10% reconhecidos pelo governo federal. Em Minas, certificados, provavelmente após o declínio da mineração, escravos fugidos e população negra livre que se juntaram e ocuparam terras devolutas (sem destinação pelo governo) no fim do século XIX: última geração de africanos que fizeram a economia do café de Juiz de Fora. Terra arenosa, cortada pelo leito de rios secos. O estigma do isolamento preservou as tradições - por exemplo, fiam algodão nos mesmos métodos e maquinário dos ancestrais. E cantam: "Bambu, quero ver quebrar / Êêêê, cê quebra já / Cê quebra devagarinho / Èêêê bambu / Pra não machucar" (comunidade do Córrego da Rocha, Chapada do Norte, a 528km de Beagá). ----- No passado, a música era um alento para amenizar a dor dos escravos nas lavras de diamantes e ouro, mas o canto de trabalho continua (derivado do 'ocisungo', hino ou canção no idioma umbundo, de Angola), agora rotina que os ajuda a vencer a rudeza do sertão. As letras misturam elementos do campo com promessas de amor: "Roda morena, morena torna a rodar / Nunca vi em quem tem amor despedida sem chorar." Música secular memorizada. Os mais jovens se encantam com o funk da cidade grande, os idosos evitam cantorias com bebidas alcoólicas que irritam os pastores evangelizadores... - há quem prefira o templo às modas de viola e sanfona. ----- A Rota dos Quilombos é o reencontro das comunidades negras do vale com o passado quase esquecido. Congadas, bailado dramático com canto e música e a coroação do rei do Congo... Não há letra escrita ou arquivo digital e sim guardiões de memória (certamente o jovem aprendeu com avô ou a mãe ao pegar água no rio), nos quilombos do semiárido mineiro. (Memória triste era o mesmo riacho ser chamado de "córrego sujo" na área das comunidades negras e "córrego limpo" na sede do município.) O Mestre dos Santos Reis /oficial gari de Berilo: luvas encardidas e máscara/ dirige os festejos de Nossa Senhora do Rosário, em outubro - muitas danças e cantos, trajes de salões e turbantes brancos, rodas de tambores e batuques, elementos católicos + rituais religiosos africanos - hoje, instrumentos de percussão guardados na casa paroquial após muita resistência dos padres. ----- As comunidades quilombolas passaram a cobrar políticas públicas mais efetivas ao governo estadual, a começar pelas titulações das terras e em seguida a certificação do quilombo - recadastrar as famílias e convencê-los a aceitar um título provisoriamente coletivo - inalienável, indivisível, imprescritível. Terror foi a repentina seca implacável, estiagem que agravou o êxodo rural - quem antes migrava sozinho como boia-fria para a colheita de cana e café em São Paulo, agora levou a família toda. A matriarca local reafirmou seu poder cuidando das mulheres e crianças da comunidade de 60 famílias em Caititu - Dona Duquinha foi lavadeira, torrou mandioca, fiou algodão, e hoje dá nome à rua principal, roupas coloridos remetendo a uma aldeia africana - seus potes de barro servem até hoje a Quinta-feira do Angu na Festa de Nossa Senhora do Rosário. ----- Grande culinária mineira, a dos quilombolas!
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FONTES:
Recorte não identificado --- "Viagem ao coração quilombola" - Rio, revista O GLOBO, recorte sem data.
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