Contra-as-mãos

Credo, você parece um morto. As minhas mãos eram geladas como uma privada as três da madruga num dia de julho. Frias. Longas. E finas. Se me lembro bem essa é a razão de nunca tirar as mãos do bolso. De nunca abraçar apertado, ou mesmo de acariciar da forma mais leve e irrelevante o ombro encoberto daquela menina. Pelo menos essa é a desculpa que eu inventei faz pouco caso alguém me pergunte de supetão sobre a minha forma idiota de agir. A gente mente para dizer a verdade. E é mais fácil ser um perdedor racional do que qualquer outra coisa. Pelo menos eu tenho razão em ser trouxa. Ninguém vai perguntar pro trouxa porque ele é trouxa. Pressão baixa, eu acho, é a verdadeira causa. Sei lá. A verdade é que as pessoas que conheci não gostavam de mãos frias. Pelo menos das minhas, não. Meu coração era quente. Era somente as mãos, poxa. Fiquei sozinho. Ainda estou. Um sorrisinho torto e uma voz estridente daquela pessoa ao dizer credo, você parece um morto com essas suas mãos frias dói mais que morrer de hipotermia pelado no fundo de um lago sozinho e afogado no meio do país mais frio do mundo no dia mais congelante do inverno quando já fazem mais de quatro messes que o sol não aparece. Dói mesmo. Viver é dolorido, você já sabe. Se é por causa da pressão baixa então quer dizer que meu coração gelado é que deixou minhas mãos frias ou pode ter sido que minhas mãos frias fizeram meu coração gelado e hipotenso? Não sei, mas um dos dois me fez sozinho. Além daquele sorriso torto. Daquela voz estridente. Daquela pessoa. Do medo da dor da alma desnudada no meio das mãos viris e quente dos outros.

Também não consigo olhar para os olhos. Não vejo nada neles. A Alma está nas mãos. Elas lavam os olhos remelentos de manhã. Elas pegam a comida e levam a boca. Gruda um pouco de comida nos dedos das mãos então a gente lambe eles como se fossemos comer a nossa própria mão. É como um seio fora da mãe. Gostoso. E com elas escrevemos, apertamos, giramos, seguramos, masturbamos, trabalhamos.

Nós temos mãos. E com elas fazemos a vida. Eu não. As minhas são frias. E eu sozinho.

Me dá pavor não ter força nem consciência para levantar meus olhos e encarrar de esguelha os olhos dela. Até hoje ainda não sei a cor deles. Esqueço. Li num livro num dia desses que sem o toque humano um recém nascido morre ou adoce por carência de nutrientes humanos. Toque. Acho que é verdade. Acabei de lembrar também que vi na internet que o pior pecado do ser-humano é que ele esquece. Toda vez antes de sair de casa eu me lembro de ao menos olhar pros olhos dela e tentar vê-la por completo. Toda vez eu esqueço. Eu esqueço, toda vez, enquanto ainda há vezes, de viver enquanto vivo o momento. Depois passa a vida e eu me esqueço. Será que ela lembra de mim enquanto dorme, ao menos. Não. Eu lembro dela. O meu pescoço trava por si só e não me deixa levantar os olhos e olhá-la. É como ser uma algema de si mesmo. Duro e frio. E além do mais por que razão ela se lembraria de mim se as minhas mãos são frias e distantes dela diferente das dos outros.

Nela há mãos que eu queria tocar e olhos que eu queira ver, mas eu não sou quente como os outros.

Pensei tudo isso num relâmpago. Num flash. Como um carro que, do nada, numa curva a caminho da praia na serra bate de frente com um caminhão que surgiu de repente vindo direto do inferno. Ao prender apertado, de repente e por reflexo, os dedos dela na minha mão por causa de uma gastura na coluna que ela me dava ao raspar com suas unhas o esmalte dessas mesmas unhas. Não foi reflexo, foi intensão. A gente respira porque quer. Num ato de violência contra a repressão de mim sobre mim mesmo. Num ato violento na contra-mão de mim. Ainda estou com as mãos dela nas minhas. E não sei o que fazer. Estou perdido. Ela não sorriu torto. Ela não usa uma voz estridente. Eu não olho para seus olhos porque ainda estou preso em meu medo. Ela me ama? Ela conhece o amor. Ela não disse credo. Ela não disse que minhas mãos são frias. Ainda as seguro. Travei. Ela já viu outras mãos, eu sei. Eu só vejo as dela.