Intimidade, segundo Cauan e Abel

Colegas e amigos e primos em primeiro grau. Um pra lá, outro pra cá, estradas divergentes. O mundo era grande, mas ficou do tamanho de um avião. Cauan e Abel conheceram muita gente nas andanças entre Oropa, Bagdá e Garanhuns. De todo o tipo. Diz o tango que “veinte años no es nada”, mas isso só se sabe mesmo ao vivê-los mais de uma vez.

Os primos separaram-se aos quinze, encontraram-se, casualmente, depois de vinte anos. E, agora, mais vinte. Cauan quase matou Abel... de susto pelo encontro inesperado. Ambos estavam muito mudados. Pele, cabelos, sorrisos e abraços, cada vez é diferente, pelo menos os dois estão vivos, de quantas armadilhas escaparam desde o último encontro? O tempo ruge, leão faminto ameaçando os humanos. Acabara de chover, a rua estava coalhada de folhas e flores arrancadas pelo vento. O asfalto recém molhado respirava umidade.

Abel - Lembra Amanda?

Cauan – Lembro, pensando em fazer o eterno trocadilho da adolescência, cantarolando: “Amada Amanda...”.

Conteve-se. O primo tinha a cara triste.

Abel – Separamos pela segunda vez.

Cauan - !!!! ?????

Abel - Verdade. Eu a namorei na adolescência, recorda? Me mudei, rodei pelo mundo, quando voltei estava casada, só aluía o pé da cama matrimonial pra me encontrar. Voltaram os tempos dos jasmineiros em flor. Porém eram só pífias quatro vezes por ano debaixo dum quieto, cheio de sigilo. A cama matrimonial de que falo era a legítima cama matrimonial, a autorizada pelo juiz de paz, abençoada pelo padre e paga em doze prestações ao dono da Mobiliadora Vellho do Restelo, ali pertinho da Funerária Requiescat in Pace, a que pertenceu ao vovô. A gente só se via – e por poucas horas – quatro vezes ao ano. Não há amor ou paixão que resista a tão pouca intimidade. E você?

Cauan - Separei também. Caí fora.

Abel - Da Ana Lídia?

Cauan - Exatamente

Abel - Mas como? Por quê? Impossível!!Par perfeito, par perpétuo.

Cauan - Você vai me dar razão. Imagina, ela só me dava folga quatro dias ao ano. Quatro dias ao ano, que eu aproveitava para respirar, falar com o espelho, você não está entendendo. Era a esposa no sentido castelhano da palavra: algema. Não há amor ou paixão que resista a tanta intimidade.

Abel - Você tem razão. Agora só falta tomar uma cerveja.

Cauan – Vamos, enquanto temos tempo. A próxima, quem sabe quando!...

Abel – “Veinte años no es nada”.

Abraçaram-se, deram-se um beijo no rosto, à argentina, e seguiram seu caminho, um pra cá, outro pra lá, na rua molhada de chuva. Cauan lembrou-se do tango e saiu assoviando “Volver”, afinadíssimo. “Veinte años”, realmente, não era nada.

William Santiago
Enviado por William Santiago em 21/09/2018
Reeditado em 28/09/2018
Código do texto: T6455393
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2018. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.