ANATOMIAS DE UM AFETO

Caíram lágrimas, embora já considerasse suas lágrimas secas. Ossos do ofício.

Na mesa, fria, ainda mais frio o inerte corpo dele.

Sua pele, nívea como o algodão, como antes fez esta comparação, agora estava azulada. O sangue que corria arisco pelas veias e despejava calor sobre ela antes, agora jazia decantado em veios roxos espalhados por todo o corpo.

Era só mais uma autópsia. Dizia para si mesma, como entoando um mantra.

O bisturi foi pousado com delicadeza logo abaixo da clavícula. Colocou seu fio, inadvertidamente, naquele sinal de nascença, que parecia um caroço de feijão. Lembrou-se como achava terna aquela marca, e como os dois pensavam como seria quando aquele caroço brotasse, se espalharia uma rama por todo seu ombro. O bisturi corre transversal, suave, rompendo a pele.

O primeiro rompimento. Lembrava daquele novembro sisudo, o fim da primavera providencial, onde pouco floria entre eles àquela altura.

No segundo corte, fazendo um V, o sangue escorreu e decantou no vértice da cisão e o terceiro corte reto deu por fim o desenho da tulipa de vinho que dividiram, celebrando seu reconcilio.

Abriu, então, caminho para seu interior. Literal, dessa vez, sem a mágica de outrora. Retomava o mantra, mais uma vez. Ali, as entranhas abertas, um emaranhado de vísceras que era tão complexo quanto de tudo que sua incursão a sua essência, daquele jeito suave de antes, a fez imaginar. Procurou, primeiro, aquilo que antes achava saber conhecer bem, pois dali saberia o que o levou. Tateou entre ossos, músculos, pleura, veios e nervos até encontrar. Agarrou aquele músculo oco, sentiu-o, apertou-o com um fundo de saudades, e uma reminiscência de culpa, pois imaginava ter contribuído para seu fim. Baixou o microfone de registro e, lacônica, encerra o exame.

- Causa Mortis: Colapso cardíaco.

David Leite
Enviado por David Leite em 14/09/2018
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