ESPIONAGEM FAMILIAR

No confortável, sólido e bem construído casarão moravam muitas pessoas. Havia gente de casa ou da família e trabalhadores para as tarefas do lar.

O velho José continuava a empreender esforços diários para tocar obras de construção de sepulturas no cemitério, enquanto a esposa Cida mantinha o negócio de produção de bordados e toalhas de labirinto no próprio lar, trabalhos que vendia para um comprador certo em Belo Horizonte. Para tanto, utilizava-se de uma única logística de distribuição ou de entrega feita pelos Correios e Telégrafos para os artesanatos de valor que produzia.

D. Cida sabia ler e tinha o jornal Gente para a leitura vespertina que regularmente praticava, sentada em confortável cadeira de balanço em madeira de lei em sua morada, fato continuado diariamente até os quase 80 anos de idade, ocasião em que as vistas começaram a falhar.

Pouco letrado, o patriarca não sabia ler. Assinava o nome tão-somente, porém com enorme lentidão que chegava a incomodar quem o observava naquele raríssimo momento. E foi justo por isso que delegara qualquer escrita em seus negócios à sobrinha de confiança, de nome Deusa, uma moça adulta que então estava a envelhecer sem conseguir um marido, pois tinha o atípico hábito de dispensar os pretendentes mais apaixonados que cruzavam seu caminho. Muitos da família e até amigos já a consideram uma vitalina e com tal qualificativo a chamava freqüentemente. Era, entretanto, tratada como filha muito querida e considerada uma criatura de extrema confiança dos patriarcas, os quais a delegaram a missão de assinar recibos ou vales dos trabalhadores peões do “seu” José, escrituras de imóveis adquiridos pelos velhos, etc. e, desse modo, era plenamente atendida a demanda de assinaturas que certamente teriam muitíssimo atazanado a vida daqueles familiares de poucas letras.

“Seu” José era um empresário nato e demonstrava manter o foco das atividades laborais na arregimentação de bons pedreiros e na supervisão sobre a construção de capelas no cemitério único da cidade. Para assegurar uma logística de suprimento firme, se fizera proprietário de um depósito de materiais de construção localizado próximo ao muro lateral direito do cemitério e nele mantinha basicamente tijolos, cimento, areia e cal, produtos essenciais às obras e de maior demanda nas ditas; e, assim, sempre muito atento a tudo que comandava, coordenava e garantia o bom funcionamento e a perfeita continuidade das empreitadas que habitualmente conquistava, não sabendo de cronograma algum, muito menos de atraso temporal sobre os eventos planejados – coisas mais comuns de acontecer hoje em dia para engenheiros construtores de conhecimentos alargados em projeto e construção de imóveis.

Quando uma folga aparecia, tinha para o lazer próprio caçar de espingarda, tendo corroborado para a redução das espécies de aves e animais no planeta graças à certeira pontaria, com a qual tanta fama galgara na juventude, antes da catarata reduzir-lhe a visão a ponto de inibir que as caçadas fossem feitas. Naquela era, entre o primeiro quarto e a metade do 18º século, a fauna era deveras abundante e as leis de proteção ambiental inexistiam. Não havia o Ibama, não havia legislação para punir crimes dessa envergadura...

“Seu” José fora, pois, responsável pela redução de muitas aves nativas e até contava para os netos de um exemplar abatido que aparecera misteriosamente pelas bandas da Foz do Rio: um exótico e raro Maguari, o qual abatera com um tiro certeiro de longa distância, provocando a admiração de amigos pelo feito espetacular após ter empreendido uma dedicada e difícil caçada de perseguição ao pássaro belo e agigantado por vários dias até tê-lo na mira da arma mortífera que usava. Fora apenas um tiro e extinguira-se o Maguari naquelas plagas. Não se sabe, todavia, se fora a hecatombe do Maguari, pássaro do qual não se ouviu mais falar naquele fim de mundo.

D. Cida, mulher de fibra, fertilíssima reprodutora, dera ao “seu” José 19 filhos, fato corroborado pela não- prática de proteção contra a possibilidade de gravidez, o que era normal de se ignorar naquele tempo. Muitos dos descendentes não se criaram e foram vítimas de doenças, de moléstias comuns, das quais a medicina pouco desenvolvida ou precária à época não conseguira salvá-los. Outros caminharam pelos agravos não- transmissivos do alcoolismo e do tabagismo, encurtando drasticamente as vidas, levando sofrimentos ao casal de patriarcas.

D. Cida paria regularmente em casa e ficava a cuidar do nascituro e a cumprir costumeiro resguardo de um mês dentro do próprio quarto de casal, onde existiam poucos móveis, malas, um cofre e duas redes armadas – a dela e a do marido.

À noite, o casal fumava cachimbo de fumo de rolo e ambos conversavam deitados confortavelmente em rede sob a atmosfera agressiva da fumaça exalada e aprisionada no quarto quente e praticamente sem ventilação alguma.

Curioso era que D. Cida deixava o resguardo já grávida do próximo filho – a nascer cerca de nove meses mais tarde. O marido não dava trégua à mulher caseira e extremamente trabalhadeira... deveras parideira que era!

Até pelos anos 50, sem que a televisão tivesse ainda invadido os lares e tendo o patriarca muita energia, característica de uma época sem estresse ou, como bem se falava antigamente, quando a prática exagerada de anglicismo não vingava por aqui, as pessoas não experimentavam estafa física ou mental, sintomas de que padecem tantos casais nos tempos atuais, onde se incluem parentes e amigos nessa legião de enfermos na vigente hodiernidade; e, justo por isso – quem sabe? – o “seu” José parecia fazer o complemento das necessidades sexuais na rua, com mulheres de pouca credibilidade e interessadas diretamente no dinheiro muito que sempre dispunha no bolso e tinha e podia pagar pelo prazer oferecido daquelas amigas, as quais despertavam certamente o ciúme de D. Cida, mulher dedicada que, por ser obrigada a ficar nos limites das paredes do lar para tocar os negócios que desenvolvia, apenas sabia de tais “coisas” quando chegadas aos ouvidos por outrem, trazidas sempre por gente interessada em puxar o saco da dona-de-casa e conseguir algum trocado em favor – sim, pouco dinheiro, pois D. Cida era conhecida como mão-fechada ou mão-de-vaca na boca miúda.

Esposa atenta, D. Cida gerenciava a entrada e a saída de dinheiro no cofre mantido em casa. Sentia-se a verdadeira dona absoluta da grana e bem sabia que parte vinha mesmo das atividades econômicas desenvolvidas por ela mesma no fabrico e na venda de confecções.

Mesmo sem jamais ouvir falar do surgimento ou crescimento de alguma prole fora da fronteira familiar e, por ser muito zelosa com seu patrimônio, D. Cida costuma monitorar as saídas de “seu” José para o cemitério, onde ele permanecia a maior do tempo a comandar as obras tocadas por empreitada com órfãos e com trabalhadores entendidos como funcionários de sua empresa, cujo nome alguém jamais soube. Todos a chamavam de construtora do “seu” José.

Dizia-se então que o adultério acabava com os homens porque estes corriam o gravíssimo risco de contraírem a danada da gonorréia... A sífilis podia matar!

Sem cerimônia alguma, D. Cida determinava a Safo, o mais velho dentre todos os outros netos e que já era adolescente e parecia ter algum juízo, para seguir os passos do patriarca sempre que o mesmo deixava a residência e rumava para o local de trabalho. Safo ganhava alguns trocados para desempenhar cada tarefa expiatória. Muita gente sabia que D. Cida imaginava ocorrerem breves desvios no itinerário para um rápido encontro amoroso de “seu” José com mulheres, o que popularmente significava – e ainda significa em muitos cantos do globo – pôr um par de chifres na cabeça dela!

Quando o jovem Safo era avistado pelo avô, este logo o chamava e oferecia dinheiro para prestar a informação de que nada vira, fazendo o neto oportunista receber dois pagamentos pelo mesmo serviço: o oriundo da avó que o mandava espionar o avô; e, o provindo do avô espionado, que o agraciava generosamente com algum dinheiro para nada falar do que vira entre ele – o avô – e as visitadas amigas quando do regresso à casa de D. Cida. Cínico e esperto era o neto que sempre ganhava um dinheirinho fácil para si e, nessa situação, mostrava-se feliz e de bem com os avós. Com extrema facilidade, podia-se perceber a elasticidade fantástica apresentada pelo caráter daquele neto...

Comentários de filhos e sobrinhos mais velhos, remanescentes daquele clã que pouco soube aproveitar a riqueza construída pelo casal de poupadores, que chegou a construir e possuir cerca de uma centena de casas, todas mantidas ocupadas por inquilinos que geravam uma receita vultosa. A prole, contudo, composta de descendentes – filhos e netos, inclinara-se velozmente para a deterioração do patrimônio recebido de mão beijada e herdado sem merecimento algum.

A juventude passara graças à inexorabilidade do tempo, os avós se foram do mundo e Safo se vira só na vida, com esta sem mais apresentar-lhe boa qualidade como quando das vacas gordas. Chegara facilmente ao alcoolismo, que acabou por levá-lo ao nível exacerbado de prática tal qual o que Safo mantinha do tabagismo.

Declinando dos valores morais e sociais em função da falsa moral ou da prática moral extremamente distorcida quanto a valores positivos, bem experimentada durante a vida consciente, porém minguante, hoje estar a prestar contas aos velhos José e Cida... no além!

Oswaldo Francisco Martins
Enviado por Oswaldo Francisco Martins em 11/09/2018
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