Um grito alto
Um grito alto. Arrepios em meu corpo. Suas unhas eram mais afiadas do que a faca que eu segurava em minha mão. Estavam somente eu, ela, suas unhas vermelhas, seu vestido florido, seu sorriso angelical perturbador e seus pequenos olhos cobertos pela sombra de uma franja em composição a uma única lâmpada grudada no teto. Não era “somente”. A quem quero enganar?! Em seus altos saltos ela preenchia toda aquela escuridão sem fim e todo aquele pequeno círculo iluminado em que nos encontrávamos abaixo. E eu? Bem, eu era uma mera peça sentada em uma cadeira de madeira. Sem tirar meus olhos daquela criatura eu tentava não sucumbir ao terror que se espalhava pelo meu corpo.
Um grito alto e distante. Ela se aproximava, em câmera lenta. Ela andava e seus passos me lembravam um relógio. Cada passo a mais, cada segundo a menos. Um. Dois. Três. Quatro. Ela estava próxima. Ela ria e sua risada produzia em meu corpo ondas de dor e desejo. Desejo e dor. Minhas veias, meu sangue, minha cor. Eu estava tremendo e deixei minha faca cair no chão. A faca no chão: um barulho estridente. Silêncio.
Um grito mais alto mais perto. Ainda não conseguia ver seus olhos, mas sentia seu olhar. Estava nua sobre eles. Me vestia de pele e suor. Estava frio e eu suava muito. Não possuía, não continha. Ela continuava parada a examinar-me. Passeava por todo o meu corpo e além. Ela ia além de mim, do que eu era ali. Agora ela ainda estava aqui, ela continuava aqui e eu não sei mais distinguir o tempo. Quanto tempo se passou, quanto tempo eu ainda sou?
Silêncio. Ela desceu do salto, tirou o seu vestido florido e me deixou olhar dentro dos seus olhos e me deixou chorar dentro de seus olhos e me deixou. Ali, sentada, ela diminuiu os espaços que existiam entre nós, todos eles. Sem precisar pedir sentou em mim e me beijou. Minhas mãos paradas, minha língua na sua. Eu chorei, eu chorava. Suas mãos caminham por todo o meu corpo enquanto suas unhas me riscam, me marcam e me abrem. Eu sou seu quebra-cabeça, eu me desmonto, ela não me monta. Nossos corpos no silêncio e eu não consigo ouvir. Ela desmontou minhas orelhas. Mas ela trouxe uma corda, ela é selvagem, ela gosta de me enfeitar. Ao sorrir, ela me entende e com o olhar cheio de amor me enfeita. Me faz um colar com um nó diferente, é um presente único e colocá-lo em mim me faz sentir-me única. Sou dela e choro para ela. Sou apenas dela. Ela me mostra até onde a corda vai, amarrada a única luz que nos ilumina. Eu a amo. Ela levanta e me põe em pé na cadeira onde estava antes sentada. Calça seus saltos novamente e em câmera lenta se afasta. Um. Dois. Três. Quatro. Quantos segundos me restam? Eu não sei. Ela me dá um último sorriso e eu lhe dou meu primeiro. Ela chora para mim e eu perco o chão.