O TEMPORAL
De repente, desponta negra a barra do horizonte. A montaria levanta as orelhas, alarga as ventas e ameaça estacar. O frágil e assustado cavaleiro fustiga o animal. Que siga em frente! É preciso sair dali antes que o temporal desabe sobre eles. O pretume no céu aumenta, como pálpebra medonha que se fecha. O guri sabe a dinâmica dessas tormentas nas planícies banhadas do Sul. A estrada por onde seguem é um aterro baixo, com menos de meio metro de altura, em média. Quinze ou vinte minutos de aguaceiro e a estrada estará inundada.
Olha para o alto e vê que metade da abóbada celeste já escureceu. Mira novamente o horizonte e avista uma nuvem de poeira e umas poucas árvores, ao longe, cujas folhas se agitam freneticamente. Está chegando! - pensa. E já não há tempo para buscar abrigo. Fustiga ainda mais o animal. Quem sabe dá para chegar à ponte? Os pilares que demarcam as cabeceiras dariam alguma proteção contra o vento. E ali o aterro é mais alto. A chuva, ainda que forte e duradoura, no máximo os ilharia por algumas horas. O animal, porém, sabe melhor do que ele o que lhes vem de encontro. Atravessa-se na estrada, ensaiando meia volta, no intento de virar a traseira pro temporal. Nem os calcanhares que lhe apertam as ilhargas, nem as fracas chibatadas com o rebenque o convencem a seguir em frente.
E vem o primeiro guascaço! Uma lufada forte de vento e poeira e, em seguida, os primeiros pingos d'água, que mais parecem lanças a bater na pele! E, por fim, o que o cavalo já sabia que viria: granizo! Pedras de gelo do tamanho de bolas de gude ricocheteiam na pele da montaria, caem e desaparecem na lama que se forma. O guri tenta proteger as orelhas com as mãos e se arrepende de não usar chapéu, contrariando um hábito comum na região. O temporal se arrasta por três quartos de hora. O flanco direito do animal, que está quase de costas para a tempestade, é que dá um mínimo de proteção ao piá. A água invadira o aterro e estava a meia canela. E, quando tudo se encaminhava para um final feliz, uma capivara, ou um ratão do banhado (não deu para ver direito), tenta passar a nado por sob o cavalo, que se espanta e sai do aterro para a vala que o margeia, levando junto o rapaz. Este nada em desespero, uma vez que a correnteza é forte, e finalmente consegue voltar ao aterro, seguido do animal que o acompanha.
Sentindo as mãos geladas, o guri as examina: o dorso de ambas apresenta marcas vermelhas; os nós dos dedos e dos pulsos sangram, por terem servido de escudo contra o granizo; as orelhas ardem, pois algum granizo as atingiu no início. O nível da água, agora, está um pouco mais alto, chegando quase aos joelhos. Mas, como a tempestade já passou e a chuva está fininha e calma, ele puxa pela rédea a montaria e se encaminha para a ponte.
Em lá chegando, prende o buçal à argola do peitoral do animal e o amarra a um dos pilares. E pensa que foi sorte o arreamento não ter afrouxado e caído, pois não teria forças para recolocá-lo no lombo do bicho. Está cansado e faminto (sedento não, porque acaba de tomar duas mãozadas de água da enxurrada). E desata o choro, perguntando-se por que ele, aos onze anos, já tem que trabalhar daquele jeito? A maioria dos piás que conhece, numa hora dessas, de tempestade, estão no abrigo de seus lares, em companhia dos adultos. Os filhos do major, fazendeiro vizinho, estão na cidade, bem protegidos. Quando vêm à fazenda é de camionete e só andam de sapatos, ou botinas reforçadas. Olha para os pés magros, descalços e enlameados e chora ainda mais! Porém, de chofre, abre-se numa gargalhada que atravessa a planície alagada e chega até as coxilhas distantes, às árvores que avistara antes de chegar o temporal, ao horizonte vasto!
Que merda de homem sou eu? Ora, o que diriam os meus amigos, os peões, os meus parentes, se soubessem que chorei por uma coisinha de nada? Solta as amarras do cavalo, vira o pelego para que a lã molhada fique para baixo, e salta sobre a sela, disposto a concluir a tarefa, que é entregar um tarro de leite na casa do major fazendeiro, na cidade. Por falar em tarro, olha e vê que o mesmo se mantém firme, preso ao arreio pela presilha de couro que resistiu a toda aquela situação. Que se dane a tempestade, o susto, os pequenos ferimentos. Eu sou é homem! - pensa. Eia, meu baio!