1057-FERVOR RELIGIOSO -

No dia de Corpus Christi as ruas eram enfeitadas para a procissão das três da tarde, com figuras formadas com serragem, pó de café, casca de arroz e de café, e outros materiais coloridos (até mesmo terra vermelha e reia branca), flores e folhas verdes.

As ruas de Vento Leve, pequena cidade do interior de Minas, eram ocupadas por figuras que representavam os mistérios da religião católica, verdadeiros tapetes efêmero, sobre os quais passava a procissão do Corpo de Deus.

Segundo a tradição da Igreja Católica a solenidade do Corpo e Sangue de Cristo começou em 1269, quando a Igreja viu a necessidade de fazer as pessoas sentirem a presença real de Jesus de Nazaré. A história registra que Pedro de Praga era um sacerdote cheio de dúvidas sobre a presença de Cristo na Eucaristia até que um dia, celebrando a Missa, na hora da consagração um milagre aconteceu: a hóstia branca transformou-se em carne viva.

Ao saber do milagre, o Papa Urbano IV mandou que os objetos que estavam no altar naquela ocasião fossem levados para Oviedo (Espanha) em procissão solene, e foi então que decretou a festa de Corpo de Deus.

Esta é a história sagrada e oficial. O que quero contar aqui é uma história do que pode acontecer pelo excesso de zelo religioso.

Dia de Corpus Christi, um ano da década de 1940. Ensolarado de um sol morno como costumavam ser os dias daquela época. A população envolvida desde cedinho no enfeite das ruas. Equipes de jovens, casais em duplas, famílias de muitas crianças, grupo de congregações, uma atividade bonita de ser ver.

Como todos os anos, o trajeto da procissão passava pela Rua Professor Zacarias Albuquerque, justamente onde havia morado o insigne mestre, e cuja casa assobradada era ainda ocupada pela ultima descendente, dona Constância Madeira Albuquerque carinhosamente conhecida por dona Tancinha.

Fervorosa católica pertencia à Congregação do Sagrado Coração de Jesus e fazia questão de participar ativamente na Festa do Corpo de Deus. Os vinte e cinco metros da rua defronte sua casa eram enfeitados por ela, com pequena ajuda de alguns alunos que lhe levavam os materiais coloridos para a confecção do “tapete”.

Era incrível como dona Tancinha, alta e obesa, conseguia agachar-se e ajoelhar-se e formar tão belos arranjos com os materiais tão rústicos.

Quando terminava, mandava tirar fotos do “seu pedaço” de tapete que mais tarde iria exibir às amigas da Congregação do Sagrado Coração de Jesus.

Ora, morava exatamente defronte ao sobradinho de dona Tantinha, outra mulher famosa, justamente por ser o oposto da professora: Maria Futrica era uma senhora idosa, magra, mirrada, cabelos ouriçados como se fosse um espinheiro, feia como noite de tempestade, e dada a fazer o que o apelido indicava. Falar mal dos vizinhos e de pessoas de toda a cidade, maldizer seus desafetos, que eram muitos por obra de sua própria futricagem.

Dona Tancinha aguentava a presença tão incomoda da vizinha da frente, como parte de seu Calvário nesta existência e fingia ignorar a futriqueira. Que, por sua vez, não importunava Dona Tancinha, até aquele dia de Corpus Christi.

Maria Futrica não era religiosa, não frequentava nenhuma igreja e nunca se importara com aquele dia-santo solene. Mas, naquele ano, sem qualquer explicação, cismou de enfeitar também aquele trecho de rua, até então de exclusividade de dona Tancinha. Ela apareceu bem de manhã, quando dona Tancinha ainda estava recebendo as vasilhas com os materiais que iria usar, trazidas por seus alunos mais dedicados.

Com duas latas grandes, de dezoito litros cada, uma contendo serragem branca e outra com pó de café (onde teria conseguido tanto pó de café?), começou a espalhar as duas cores defronte o trecho defronte sua casa.

Ao ver a atividade de Maria Futrica, dona Tancinha, surpresa e de cenho fechado, começou a traçar, de seu lado, com um giz grosso, o desenho das figuras que iria formar. Claro que num momento, chegou ao local onde Futrica já espalhava, sem nenhum rigor, seus pós branco e preto.

— Dona Maria (disse delicadamente a professora) seu desenho não confere com o meu. Ai onde a senhora espalho pó de café será lugar em que colocarei flores...

— Desenho? Que desenho? Vou enfeitar do meu lado como quiser.

— Por favor, retire este pó e esta serragem para...

— Quem é a senhora pra me mandar tirar aqui do meu lado? Faz seu lado que eu faço o meu.

Dona Tancinha prosseguiu, de joelhos, traçando linhas no espaço ainda não ocupado por Futrica, que protestou:

— Vai lá pro seu lado, que aqui do meu lado eu é que vou enfeitar.

— A senhora nem é católica, que eu sei! — exasperou-se dona Tancinha.

— Vai beijar a batina do padre!

Ou porque já havia muita serragem no chão, ou porque dona Tancinha já estivesse cansada de estar ajoelhada, levantou-se num supetão, escorregou-se e desmanchou, sem querer, boa parte do “serviço” de Futrica.

—Sai prá lá, sua elefanta! – e empurrou da professora.

Os alunos que assistiam o incidente viram a professora tombar de lado e não se contiveram: avançaram, uns para ajudar a professora se levantar, e outros para vingar o empurrão.

Maria Futrica viu quando dois meninos vinham para o seu lado, e pegando um punhado de pó de café, jogou nos rostos deles. Eles avançaram, agora mais brabos, limpando os olhos e empurrando Futrica. Esbarrando nas latas com os pós, folhas e outras coisas, esparramadas pelo chão da rua.

Estabeleceu-se uma confusão. Outras pessoas entraram não se sabe se para separar as partes ou para tomar parte. Daí a pouco, era um rolar de corpos pelo chão, que se sujavam com os materiais coloridos e levantavam-se como se fossem palhaços arrumados para um show de circo ali na rua.

Os meninos chutavam e esmurravam Futrica. A gorda professora levantou-se, ajudada por uma moça que passava. Mancando, com escoriações no braço, chorando, foi levada para sua casa.

- Ai, meu Deus, me ajuda! Quero terminar o tapete...

Mas foi em vão seu pedido. Não conseguia mais se levantar da poltrona onde se sentara e a jovem lavava o raspão de seu braço, tirando o sangue, a terra e a serragem.

Lá fora, Maria futrica ainda enfrentava os meninos e até dois homens que tentaram imobilizá-la. Parece que tinha o diabo no corpo: dava rasteiras, puxava os garotos pelos braços, provocando quedas que machucavam.

Serragem, pó de café, areia, flores, folhas, tudo se esparramou pelo pedaço. Os contentores já estavam mais do que sujos, estavam imundos.

Foi quando apareceu o Cabo Jesuino e o guarda Leôncio. Com gritos e safanões, impuseram a ordem.

— Dona Maria, a senhora está presa por perturbar a ordem... inda mais num dia de hoje! MENINADA!!! Sumam daqui!! Ou mando todo mundo prá cadeia. !!

Os garotos pegaram suas vasilhas e correram.

Virando para os inúmeros curiosos aglomerados na calçada, deu o aviso final:

— E a área está interditada. Ninguém mexe até o delegado chegar.

Retiram-se os dois fardados levando Maria Futrica pelo braço, que insistia em tentar se soltar das manoplas de Leôncio.

O Delegado jamais apareceu. E quando a procissão chegou ao local, passou sobre uma área completamente confusa e suja, o oposto de todo o percurso enfeitado magnificamente pelos tapetes coloridos.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 2 de junho de 2018.

Conto # 1057 da SérIe INFINITAS HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 20/08/2018
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