Menina top model
Visto minha melhor roupa. Ela merece a elegância. Fiz a barba, passei meu perfume preferido, Spartacus, e saio.
Terei de rodar um bom tempo antes de chegar. O Centro de Convenções é do outro lado da cidade. Espero valer a pena.
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Eu a conheci cinco anos atrás. A mãe adentrou meu escritório com ela a tiracolo sem nem menos avisar Dolores , minha recepcionista e salvaguarda de inconvenientes.
E como aparecem inconvenientes nesta minha vida! Todos, sem exceção de ninguém acham que suas filhas são o supra sumo da beleza, futuras Giseles Buntchens das passarelas e no próximo ano desfilarão em Milão, Paris e Moscou. Não entendem que beleza é o que menos importa nessa profissão de modelos. Importante sim, porém se a menina não tiver aquela luz interior e carisma, tudo será em vão. Farão alguns desfiles em mostras desimportantes. Mostrarão roupas bregas que fatalmente acabarão em brechós de beira de estrada e sumirão no valo comum das beldades fracassadas, aos 15 anos de idade. E carregarão esse carma pelo resto de suas medíocres vidinhas interioranas.
Mal entrou arrastando a filha, Dolores veio atrás se desculpando comigo. – Desculpe Dr. Márcio, não consegui segura-la.
- Tudo bem! – respondi com vontade de xinga-la. Puxa vida, essa anta é paga para barrar esse tipo de pessoa e eu ter um pouco de sossego para trabalhar. E nem isso consegue fazer?
- Em que posso servi-la? Perguntei seco, tentando ser o menos simpático possível.
- Queria que o senhor visse minha filha! - Falou atropelando as palavras. – E que desse uma chance dela mostrar seu talento.
Desviei o olhar para a menina, que toda sem jeito agarrada pela mão da mãe, olhou-me com o medo estampado no rosto, sem conseguir disfarçar a vergonha que estava sentindo. Acostumei-me a isso. Todas são assim pela primeira vez, depois deslancham via flahs fotográficos e fotos nas revistas de moda.
- Desculpe dona, mas não estamos aceitando modelos.- expliquei sem necessidade.- Estamos com nossa agenda completa no momento.
Foi nessa hora que a mãe agarrou meu braço e praticamente implorou:
- Só estou pedindo uma chance! Uma só!
- Chance de que?
- Do senhor apreciar minha filha.
“ Que merda!”pensei.
- E porque apreciaria sua filha?
- Ela é linda, o senhor não acha?
Realmente a menina era muito bonita. Alta, magra, olhos azuis e pele limpa. Bem, todas são assim. Meninas no vigor da adolescência via de regra são lindas, fotografam bem, mas fosse esse o predicado essencial, todas seriam modelos e estariam em capas de revistas.
Pelo jeito a mãe era o cabo eleitoral da filha e faria tudo para a pivete entrar no mundo models. Chamei Dolores.
- Agende uma data para uma entrevista com . . . qual o nome da senhora mesmo?
- Magdalene.
Claro que era um nome forjado. Quem nesse mundo colocaria em sã consciência o nome de Magdalene numa filha?
- Não pode ser hoje mesmo?
Intrometida a mulherzinha! “Bem, pensei, vamos lá. Não deve ter muita novidade um tipinho ridículo desses.”
Encurtando a história, em certa altura da conversa e percebendo minha irredutibilidade, ela ofereceu-se sexualmente para mim em troca de uma chance da filha brilhar nas passarelas. Quando indignei-me pela baixaria ofertou a filha e foi por isso que expulsei as duas do escritório.
Dois dias depois a menina apareceu desolada, olhos lacrimejantes e pediu por misericórdia que a recebesse.
Com pena, mas pedindo para Dolores ficar na sala, ouvi sua versão dos fatos.
“ Minha mãe – começou – é meio doida. E quer que eu seja uma celebridade a qualquer preço. Por isso a baixaria aquele dia”.
Minha assistente olhou-me de soslaio. A menina podia ter quantos anos? 14. 15 no máximo.
- Nunca quis ser modelo- afirmou categórica. – Meu sonho é ser atriz mas como conseguir enfiar isso na cabeça dura da Madá. Vive me infernizando o dia todo, falando da minha altura, da minha beleza, de como eu faria sucesso nas passarelas, e de tudo que seria capaz de fazer para realizar esse sonho. Sonho dela, não meu!
- Por isso vim pedir desculpas pelo comportamento de minha mãe.
Estendeu a mão. Apertei suave, no íntimo pensando como pode uma menina, filha, ser mais coerente que uma senhora, mãe. Ela falando, eu mal ouvindo, apenas analisando seus traços finos, sua postura corporal, seus modos finos, sua maneira casual de expor os fatos. Uma pequena dama!
Com pena e comovido, convidei-a então para fazer um teste conosco. Nada definitivo, apenas para analisar se tinha alguma chance de explosão.Na verdade apenas por estar sentindo pena.
Nesta vida de agente quando menos se espera aparece uma bombshell. Foi assim com Gisele, foi mais ou menos com Fiorentino. Cindy foi uma exceção, desde menina foi trabalhada para ser o que é.
Não que esperasse uma top model. Sou menos ambicioso. Sorte grande é para poucos e, infelizmente não estou incluído na roda da fortuna, mas sempre pode acontecer. A vida é assim, não é mesmo?
Saiu-se melhor do que esperávamos. Tinha tudo que uma grande artista da passarela podia ter. Apesar da ranhetice da mãe e sua proposta indecente , estava coberta de razão. A menina tinha futuro.
E foi assim, dessa maneira meio estranha que tornei-me agente de Raissa e a lancei para o mundo. Pequenos desfiles para adquirir experiência, São Paulo Fashion Week e o mundo. Um ano depois seu rosto juvenil e suas poses enfeitaram capas do Cosmopolitan, Vogue e todas e quaisquer revistas de formação de opinião de moda. Assim como ela, ganhei muito dinheiro e fama de descobridor de talentos.
Quando se tornou a modelo exclusiva Lagerfeld percebi que era muito grande para mim. Precisaria de um agente à altura do seu talento e eu, um modesto agente tupiniquim, apenas atravancaria seu caminho. Foi então que abri mão de sua exclusividade em troca dalguns milhares de dólares, pagos pela Lagerfeld, é claro!
Explodiu! Literalmente explodiu no mundo fashion!
E eu, bem, eu fiquei aqui pensando se tudo aquilo no início da nossa amizade não foi pura encenação. Milhares de meninas aparecem nos escritórios de moda com suas mães a tiracolo e uma minúscula minoria consegue algo. Noites e noites fiquei matutando se a ranhetice da mãe, a oferta, a classe de Raissa ao pedir desculpas não teriam sido teatrais demais. Será? Podia ser.
Pelos jornais e revistas acompanhei de longe sua carreira meteórica. Seus namoros. Seu brilho, enquanto agenciava novas modelos em busca de fama e fortuna.
Dois anos de sucesso depois, Raissa sumiu. Fofocas diziam ter se casado com um sheik árabe. Outras estar doente, bulímica. E as mais sensatas de estar dando um tempo para não cansar a mídia.
Eu sentindo-me um pouco idiota. Um pato no verdadeiro jargão da palavra.
Havia sido enganado pelas duas dondocas.
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Um autor desconhecido. Uma peça mais ainda, com um nome estranho: Bernard Stein.
Quando recebi o convite especial para a primeira fila, à princípio deixei-o junto com outros papéis de pouca importância. Contas de luz, água, propagandas.
A peça é inspirada em Pigmaleão , de Bernard Shaw. Um diplomata adota uma moça e ensina tudo a ela. Mas quando a transformação se completa , ela torna-se um monstro de maldade. Agora entendi o título. O autor foi muito inteligente e sagaz ao unir Shaw e Shelley.
E Raissa deu um show de interpretação! Confesso que teve vezes de sentir ódio por ela no decorrer do espetáculo. Os críticos convidados sentados ao meu lado,concordam comigo.
Na segunda metade não há como não admirar seu talento , por mais cético que se seja.
Minha menina não mentiu: a Arte dramática está no seu sangue. A Passarela foi apenas um meio de chegar ao Olimpo.
Estou feliz! Acabei de presenciar o nascimento da maior atriz do mundo.
Mesmo não querendo, uma lágrima de alegria nasce em meus olhos velhos e cansados e sem outro caminho perde-se no chão.
Saio sem que ninguém me veja. Chegou a hora de ir embora.
Hoje o palco é Dela.