Ela e o cachorro

Depois do campo de bola, na estrada da Roseira, passando a fazenda do Tatão, tem a grande descida. Lá embaixo, as ruínas. Uma casa de poucos cômodos, de pau-a-pique. Ali ela viveu.

Sá Maria. Foi o nome que se convencionou dar a ela, que nunca confirmou e nunca negou. Era de meia dúzia de palavras e poucos de nós pudemos conhecer a cor da sua voz. Cumprimentada na estrada, respondia lacônicas sílabas intransliteráveis.

Os mais velhos contam que ela estava ali havia décadas. A pequena gleba de terra parece ter sido herança do pai que, segundo o comum – não sou eu que estou falando, valha-me o anjo da guarda! –, morreu matado pelas bandas do Carmo.

De mês em mês ia ao armazém de Manezito comprar o que não produzia no terreiro: arroz, açúcar e sal. Seu cachorro ia junto, catolicamente. Chamava-se Duque, pelo que diziam. Manezito contava que Sá Maria sempre fazia tudo do mesmo jeito, as mesmas coisas. Se ele fazia algum comentário sobre o tempo, a chuva, o calor, ela dizia apenas: “Vida ingrata...”.

A família de Zé Rodrigues era a única que morava mais perto. Seu filho, Diguin, colega de estripulias, é que me contava coisas daquela misteriosa – para mim, assustadora – mulher. Certa feita, o sem-juízo do Diguin ficara de tocaia, até de tardezinha, perto da casa velha. Contou que o entardecer ali era mais triste que a procissão de sexta-feira da paixão. Os sapos da lagoa, a coruja e a preguiçosa fumacinha saindo da chaminé. “Fiquei meio enfeitiçado, coisa esquisita”, falou o Diguin quando perguntei por que ficara tanto tempo ali espiando.

Um irmão a visitava, de ano em ano. Parece que ele a ajudava com o dinheiro da aposentadoria. Morto ele, ela adoeceu. Duque uivava triste nas tardes. Diguin ouvia, com sentimento estranho, presságios de coisa que vem e não se sabe o quê.

No velório de Sá Maria estiveram o Padre, Zé Rodrigues, Diguin e o Duque. Eu não fui. Não iria. Ninguém iria. O medo dela era muito. Engrandecido de morte.

A casa foi fechada. As terras, poucas, com o tempo viraram capoeira. Diguin pegou Duque pra si. Eu não concordei. Mas ele não me ouviu mais, desde o dia do velório. Eu o desconheci a cada dia depois daquele. Ficavam os dias inteiros juntos, num silêncio comungado. Entendiam-se? De certo. Duque só deixava Diguin para ir ao armazém de Manezito, no mesmo jeito que sempre fizera com Sá Maria. Lacrimejava cochilante na calçada até de tarde. Depois seguia de volta, como quem cumpre um acordo.

De tão esquisito que Diguin ficou, seu pai cismou com o cachorro. “Mal agouro, esse bicho!”. Diguin fechava mais ainda o semblante, como quem advinha algo ruim, que se sabe.

Na curva da aroeira, Zé Rodrigues matou o tal. Ouviu-se o ganido longe. Eu não saberia explicar que sentimento foi aquele. Contam que o lugar ficou assombrado. Eu mesmo, rapazinho, voltando da festa da Roseira tive medo de passar ali. O cavalo relutou, como se respeitasse algo maior. Os animais enxergam demasiado. E ouvem o que não tem som.

Em Diguin, dia após dia, cresceu a tristeza. Depois a barba. Os cabelos embranqueceram com pouca idade, numa vida que não teve acontecimentos, somente um olhar vago, como quem vislumbra o nada. Casar, casou. Mas não sorriu. Nunca mais. Morreu Zé Rodrigues de morte estranha, caindo finalizado ao meio dia em ponto, no meio da lavoura. Duas semanas depois, de constipação, morria a mulher de Diguin. Ele nada disse. Não chorou, não lamentou.

Passados tantos anos, esbarrei com ele na rodoviária de Passos. Eu me lembrei que sua irmã vivia em Cássia. Vinha de lá? Vai saber.

Não trocamos palavra. Apenas um balançar de cabeça. Seu ar severo me lembrou Sá Maria. A curva, o Duque... Arrepiei. Sinal da cruz. O olhar dele parecia dizer: “Vida ingrata...”.

José Carlos Freire
Enviado por José Carlos Freire em 04/08/2018
Código do texto: T6409594
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